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Falência múltipla dos órgãos do governo

Falência múltipla dos órgãos do governo

Foto: Vovó no Pronto Socorro de Alcântara.

Eu estava sentado naquela cadeira de cor azul desbotado, com manchas marrons, uma cor quase café com leite, não sei se por sangue, iodo ou qualquer outro fluido químico ou biológico. Ao lado, uma sala que passava a maioria das vezes fechada. As poucas vezes que abriam, emanava um cheiro que, por mais que eu me esforce, não consigo descrever. Triste, desolado, cansado de uma luta que certamente perderei. Pode ser hoje, amanhã, daqui a semana ou alguns meses. Mas, certamente, perderei.

Na minha frente, a salinha de medicamentos tinha um relógio na parede marcando quase vinte duas e dez. No cantinho direito da sala, havia uma poltrona de couro sintético azul. Rasgada e com apoio para os pés, que nem o mais forte dos homens na terra conseguia manipular, estava ela com os pés em brasas, sobre uma improvisada escadinha para maca. Estava ali a mulher que lutou todos os momentos para dar o que comer para seus filhos, e que em momentos diferentes da vida, viu cada um dos três serem levados por ela. Quer sofrimento maior do que ver a inversão da ordem natural da vida e sofrer com a morte de todos os seus filhos? Sim, sua família se resume a apenas três netos e duas bisnetas.

Relógio da sala de medicamentos

O relógio da sala de medicamentos.

Com um vazio no estômago, começo a lembrar de cada momento que vivemos juntos. Desde que me conheço como gente, já tinha cabelos grisalhos. Mas não como hoje, um tufo de algodão. Seu sorriso largo e seu jeito de chamar minha atenção serão levados comigo por toda minha vida. Quando tinha minhas briguinhas na rua, ela sempre tomava meu partido. Era uma verdadeira leoa para defender sua cria. Lembro-me da sua preocupação quando não raspava o prato do almoço. Sempre amassava uma banana prata com açúcar e carinhosamente me dava na boca com seus aviõezinhos. Era um mimo só.

Minha solitária viagem no tempo é interrompida por uma gordinha baixinha que me deixou sem resposta para sua pergunta:

– Moço, moço?

Somente levanto devagar a cabeça que parecia pesar 2 toneladas até a altura dos seus  olhos.

– O senhor tem um copo descartável para me emprestar?

Pensei, mas não é descartável?

– Não, senhora. Não tenho.

– Eu preciso tomar esse remédio e aqui falta até copo descartável.

Foi aí que a senhora sacou da bolsa um daqueles potinhos de exame de urina e me fez a inusitada pergunta:

– Será que posso tomar água nesse potinho?

– Não sei, senhora. Mas não recomendo, se a senhora já fez pipi nele.

– Bom, não tem outro jeito.

Falou a mulher, enquanto caminhava até o bebedouro.

Naquela situação, eu vi a real aplicação da famosa frase “seria cômico, se não fosse trágico”.

Não havia cama disponível

A interrupção das minhas boas lembranças ao lado da minha velhinha me fez acordar para realidade. Pude perceber que já estávamos há 10 horas naquela situação. Não por mim, mas por aquela senhora de 94 anos, mal acomodada naquela poltrona rasgada, sem posição e com os pés em chamas, em cima da escadinha improvisada. A luta para conseguir um leito onde ela pudesse ficar deitada foi em vão. Não havia cama disponível, a não ser uma maca de alumínio gelada, sem colchão para acolher seu corpo.

A batalha começou ao meio-dia, quando chegamos ao Pronto Socorro de Alcântara. Ela foi atendida por uma médica de cabelos negros, com rabo de cavalo e que não parecia ter mais de 18 anos de idade. Era nítido, até para um leigo da medicina, que o quadro da vozinha, principalmente por conta da sua idade, exigia cuidados mais adequados. Mas não foi assim que aconteceu. A aprendiz de médica achou conveniente levá-la para aquela salinha de medicamentos e enchê-la de soro nas frágeis veias. Foram horas e horas nesse sofrimento, sem nenhuma medicação. Pior, sem acompanhamento da médica que tomou chá de sumiço. O que faltou de atenção da equipe médica, sobrou na equipe de enfermagem, que fizeram de tudo para acolhê-la, mesmo sem recursos. Uma das enfermeiras me confidenciou que falta do esparadrapo às seringas e agulhas. No final do nosso papo, soltou um “e não está aqui quem falou”.

Na minha peleja à procura da médica ou de qualquer outro profissional que pudesse ajudar, fui direcionado até outro médico, não muito mais velho. Ostentando um estetoscópio pendurado no pescoço, como um cordão de ouro 18 quilates, e com um ar de superioridade, disse:

– Você sabe que sua avó está bem velhinha, não sabe? Tem que estar preparado para sua partida. Alguns órgãos estão parando e ela está entrando em um quadro que chamamos de “síndrome de disfunção múltipla de órgãos”. Também conhecido como falência múltipla dos órgãos. Nesse quadro, não tem o que fazer. Ela tomará mais uma bolsa de soro e liberaremos a sua avó para que ela seja cuidada em casa.

– Mas não fará nenhum exame de sangue, doutor?

Pergunto quase implorando.

– Não é necessário.

Responde o médico sem baixar o nariz.

Aquelas palavras me deixaram ainda mais arrasado e para baixo. Mais do que já estava. Foi nesse momento que procurei meu cantinho. Naquela cadeira azul manchada de café com leite, fiquei viajando nos momentos maravilhosos que eu e minha avó passamos juntos, até a chegada da mulher do potinho.

Antes que o soro da bolsa chegasse ao fim, fui procurado por outro médico, também com seus vinte poucos anos.

– O senhor que é o neto da vovozinha?

– Sim, sou eu.

– Analisamos melhor o quadro da sua avó e resolvemos fazer um exame de sangue. Porém, lhe adianto que mesmo que o exame seja positivo para alguma grave infecção, não poderemos interná-la, pois falta leito.

– Como assim? Não podem fazer pelo menos um encaminhamento para outro hospital?

– Lamento. O senhor mesmo deverá correr atrás de um hospital para interná-la.

– Doutor, ela tem 94 anos! Já foi um sacrifício chegar com ela aqui no Pronto Socorro.

– Lamento, senhor.

Lamento, como brasileiro

Lamentar! Na verdade vivemos em uma sociedade cheia de lamentações. Eu tenho as minhas, pois lamento de coração não poder pagar dois mil reais mensais em um plano de saúde para minha avó ser atendida com mais dignidade. Lamento viver em uma cidade em que um vereador é suspeito de roubar 9 milhões de reais do SUS, enquanto nós, o povo, não temos direito a nem um copo descartável para tomar medicação. Quando não falta, também, a medicação. Lamento, como brasileiro, viver em um país onde aflora escândalos de corrupção como o da Petrobrás, onde estimasse que o desvio de 10 bilhões de reais poderiam ser aplicados em vários setores, como na saúde.

Ah, acabei esquecendo! Quer saber como foi o final da estória da vozinha no Pronto Socorro de Alcântara? Não houve final feliz. E nem haverá enquanto não houver melhora no quadro de falência múltipla dos órgãos do governo.

Alex Wölbert
Alex Wölberthttp://www.reciclaleitores.com.br
Nascido lá do outro lado da poça no bairro da Penha. Criança começou a se interessar por tecnologia e quando não dava curto na casa dos pais, ajudava a vizinhança e familiares consertando um rádio aqui uma TV ali. Formou-se em tecnologia pela UERJ, casou-se com a guerreira niteroiense Aline Lucas e mudou-se de mala e cuia para São Gonçalo com a sua filha Victoria. Apaixonado por história, ação social e principalmente pela cidade de São Gonçalo, começou a escrever crônicas para diversas mídias. Hoje divide seu tempo entre empresário de Tecnologia da Informação e o Projeto Recicla Leitores (www.reciclaleitores.com.br), um projeto de incentivo a leitura que toca junto com a sua família. Alex Wölbert também faz parte do grupo de colunistas que escrevem sobre Patrimônio Leste Fluminense para o Jornal Extra - Mais São Gonçalo.

Foto: Vovó no Pronto Socorro de Alcântara.

Eu estava sentado naquela cadeira de cor azul desbotado, com manchas marrons, uma cor quase café com leite, não sei se por sangue, iodo ou qualquer outro fluido químico ou biológico. Ao lado, uma sala que passava a maioria das vezes fechada. As poucas vezes que abriam, emanava um cheiro que, por mais que eu me esforce, não consigo descrever. Triste, desolado, cansado de uma luta que certamente perderei. Pode ser hoje, amanhã, daqui a semana ou alguns meses. Mas, certamente, perderei.

Na minha frente, a salinha de medicamentos tinha um relógio na parede marcando quase vinte duas e dez. No cantinho direito da sala, havia uma poltrona de couro sintético azul. Rasgada e com apoio para os pés, que nem o mais forte dos homens na terra conseguia manipular, estava ela com os pés em brasas, sobre uma improvisada escadinha para maca. Estava ali a mulher que lutou todos os momentos para dar o que comer para seus filhos, e que em momentos diferentes da vida, viu cada um dos três serem levados por ela. Quer sofrimento maior do que ver a inversão da ordem natural da vida e sofrer com a morte de todos os seus filhos? Sim, sua família se resume a apenas três netos e duas bisnetas.

Relógio da sala de medicamentos

O relógio da sala de medicamentos.

Com um vazio no estômago, começo a lembrar de cada momento que vivemos juntos. Desde que me conheço como gente, já tinha cabelos grisalhos. Mas não como hoje, um tufo de algodão. Seu sorriso largo e seu jeito de chamar minha atenção serão levados comigo por toda minha vida. Quando tinha minhas briguinhas na rua, ela sempre tomava meu partido. Era uma verdadeira leoa para defender sua cria. Lembro-me da sua preocupação quando não raspava o prato do almoço. Sempre amassava uma banana prata com açúcar e carinhosamente me dava na boca com seus aviõezinhos. Era um mimo só.

Minha solitária viagem no tempo é interrompida por uma gordinha baixinha que me deixou sem resposta para sua pergunta:

– Moço, moço?

Somente levanto devagar a cabeça que parecia pesar 2 toneladas até a altura dos seus  olhos.

– O senhor tem um copo descartável para me emprestar?

Pensei, mas não é descartável?

– Não, senhora. Não tenho.

– Eu preciso tomar esse remédio e aqui falta até copo descartável.

Foi aí que a senhora sacou da bolsa um daqueles potinhos de exame de urina e me fez a inusitada pergunta:

– Será que posso tomar água nesse potinho?

– Não sei, senhora. Mas não recomendo, se a senhora já fez pipi nele.

– Bom, não tem outro jeito.

Falou a mulher, enquanto caminhava até o bebedouro.

Naquela situação, eu vi a real aplicação da famosa frase “seria cômico, se não fosse trágico”.

Não havia cama disponível

A interrupção das minhas boas lembranças ao lado da minha velhinha me fez acordar para realidade. Pude perceber que já estávamos há 10 horas naquela situação. Não por mim, mas por aquela senhora de 94 anos, mal acomodada naquela poltrona rasgada, sem posição e com os pés em chamas, em cima da escadinha improvisada. A luta para conseguir um leito onde ela pudesse ficar deitada foi em vão. Não havia cama disponível, a não ser uma maca de alumínio gelada, sem colchão para acolher seu corpo.

A batalha começou ao meio-dia, quando chegamos ao Pronto Socorro de Alcântara. Ela foi atendida por uma médica de cabelos negros, com rabo de cavalo e que não parecia ter mais de 18 anos de idade. Era nítido, até para um leigo da medicina, que o quadro da vozinha, principalmente por conta da sua idade, exigia cuidados mais adequados. Mas não foi assim que aconteceu. A aprendiz de médica achou conveniente levá-la para aquela salinha de medicamentos e enchê-la de soro nas frágeis veias. Foram horas e horas nesse sofrimento, sem nenhuma medicação. Pior, sem acompanhamento da médica que tomou chá de sumiço. O que faltou de atenção da equipe médica, sobrou na equipe de enfermagem, que fizeram de tudo para acolhê-la, mesmo sem recursos. Uma das enfermeiras me confidenciou que falta do esparadrapo às seringas e agulhas. No final do nosso papo, soltou um “e não está aqui quem falou”.

Na minha peleja à procura da médica ou de qualquer outro profissional que pudesse ajudar, fui direcionado até outro médico, não muito mais velho. Ostentando um estetoscópio pendurado no pescoço, como um cordão de ouro 18 quilates, e com um ar de superioridade, disse:

– Você sabe que sua avó está bem velhinha, não sabe? Tem que estar preparado para sua partida. Alguns órgãos estão parando e ela está entrando em um quadro que chamamos de “síndrome de disfunção múltipla de órgãos”. Também conhecido como falência múltipla dos órgãos. Nesse quadro, não tem o que fazer. Ela tomará mais uma bolsa de soro e liberaremos a sua avó para que ela seja cuidada em casa.

– Mas não fará nenhum exame de sangue, doutor?

Pergunto quase implorando.

– Não é necessário.

Responde o médico sem baixar o nariz.

Aquelas palavras me deixaram ainda mais arrasado e para baixo. Mais do que já estava. Foi nesse momento que procurei meu cantinho. Naquela cadeira azul manchada de café com leite, fiquei viajando nos momentos maravilhosos que eu e minha avó passamos juntos, até a chegada da mulher do potinho.

Antes que o soro da bolsa chegasse ao fim, fui procurado por outro médico, também com seus vinte poucos anos.

– O senhor que é o neto da vovozinha?

– Sim, sou eu.

– Analisamos melhor o quadro da sua avó e resolvemos fazer um exame de sangue. Porém, lhe adianto que mesmo que o exame seja positivo para alguma grave infecção, não poderemos interná-la, pois falta leito.

– Como assim? Não podem fazer pelo menos um encaminhamento para outro hospital?

– Lamento. O senhor mesmo deverá correr atrás de um hospital para interná-la.

– Doutor, ela tem 94 anos! Já foi um sacrifício chegar com ela aqui no Pronto Socorro.

– Lamento, senhor.

Lamento, como brasileiro

Lamentar! Na verdade vivemos em uma sociedade cheia de lamentações. Eu tenho as minhas, pois lamento de coração não poder pagar dois mil reais mensais em um plano de saúde para minha avó ser atendida com mais dignidade. Lamento viver em uma cidade em que um vereador é suspeito de roubar 9 milhões de reais do SUS, enquanto nós, o povo, não temos direito a nem um copo descartável para tomar medicação. Quando não falta, também, a medicação. Lamento, como brasileiro, viver em um país onde aflora escândalos de corrupção como o da Petrobrás, onde estimasse que o desvio de 10 bilhões de reais poderiam ser aplicados em vários setores, como na saúde.

Ah, acabei esquecendo! Quer saber como foi o final da estória da vozinha no Pronto Socorro de Alcântara? Não houve final feliz. E nem haverá enquanto não houver melhora no quadro de falência múltipla dos órgãos do governo.

Alex Wölbert
Alex Wölberthttp://www.reciclaleitores.com.br
Nascido lá do outro lado da poça no bairro da Penha. Criança começou a se interessar por tecnologia e quando não dava curto na casa dos pais, ajudava a vizinhança e familiares consertando um rádio aqui uma TV ali. Formou-se em tecnologia pela UERJ, casou-se com a guerreira niteroiense Aline Lucas e mudou-se de mala e cuia para São Gonçalo com a sua filha Victoria. Apaixonado por história, ação social e principalmente pela cidade de São Gonçalo, começou a escrever crônicas para diversas mídias. Hoje divide seu tempo entre empresário de Tecnologia da Informação e o Projeto Recicla Leitores (www.reciclaleitores.com.br), um projeto de incentivo a leitura que toca junto com a sua família. Alex Wölbert também faz parte do grupo de colunistas que escrevem sobre Patrimônio Leste Fluminense para o Jornal Extra - Mais São Gonçalo.

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