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Pequenos detalhes

Pequenos detalhes

Um grande amor é formado por uma vasta colheita de pequenos detalhes. Você salvou a minha vida pelo menos duas vezes – aquela em que a gente passou no meio do tiroteio e você deu a ré no carro do teu pai pra fugir foi uma delas – mas são os passos mínimos do balé da convivência que me fazem falta.

Você não largava a toalha na cama, mas a deixava pendurada na porta de qualquer jeito, toda amarfanhada, e ela continuava molhada do mesmo jeito. Mas você também tinha a mania de esticar a passadeira da cozinha porque tinha medo de que eu caísse. “Vocês parecem que têm o pé de enceradeira”, toda vez, e eu ria, tentando imaginar o que seria um pé de enceradeira. Você fazia café pra mim, o melhor café que eu já tomei em toda a minha vida. Eu sentada no sofá, mexendo no celular, e você vindo com aquela caneca do nosso enxoval – aquela branca, com uma rachadura visível e que você não deixava eu jogar fora – e o café fumegando (“não pode deixar a água ferver senão cozinha o pó”; cheio de métodos, o seu pequeno mundo caótico). E agora, que você se foi, quem vai fazer café pra mim?

Sua voz se levantava uma oitava quando falávamos de amor. Você franzia o nariz sem perceber, e fazia uma cara de menino envergonhado que você deve ter feito no primeiro amor. Eu só especulava tal evento, claro, sem o menor ciúme dessa menina, porque tenho certeza de que ela não percebeu, e nem você. Mas eu achava bonitinho quando você queria pedir alguma coisa, e encostava a testa na minha, olhava e falava baixo. Eu ouvia, ouvi todas as vezes, mas perguntava “o quê?” só pra você repetir novamente – às vezes mais de uma vez, porque gostava também do tom de sua voz quando se exasperava de leve (não brigando, essa melodia nunca me agradou). Eu conhecia cada nota, cada escala que sua voz solfejava na vida e as lia como partituras em braile. E não pude ouvir o seu compasso final.

Você ria das piadas da TV, de pessoas se estuporando nas tardes de domingo por tentarem coisas idiotas enquanto o Faustão desfilava seus bordões rotos. Nomeava cada cinema que São Gonçalo já teve (“Aqui em Santa Catarina era o Cine Floresta!”) toda vez que passava por um, apenas para dizer “esta cidade já teve onze cinemas de rua”, e sempre terminava falando do cinema da Venda da Cruz e sua sessão dupla de sexo e caratê. Dessa vez eu não ria apenas para te agradar, eu realmente achava engraçado os nomes dos filmes e suas combinações (“Era ‘Operação Dragão´ em letras maiores e ‘Minha cabrita, minha tara’ embaixo, dá pra acreditar?”, e eu ria e ria dentro do carro). Do que eu vou rir agora?

Os risos, as falas, as falhas, a coreografia cotidiana da rotina em que rodávamos no salão da vida, olhando para a orquestra a esperar a próxima música e não percebíamos os sublimes movimentos que fazíamos na pista lotada. Os gigantescos detalhes mínimos que constroem um amor tão bonito como o nosso, e que nos envolvia de forma tão aconchegante quanto um edredom velho – como aquele, do mesmo enxoval que a xícara rachada.

E agora, sem você aqui, a realidade é uma colcha esburacada, com a qual tento me cobrir para me proteger de todo frio do mundo.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

Um grande amor é formado por uma vasta colheita de pequenos detalhes. Você salvou a minha vida pelo menos duas vezes – aquela em que a gente passou no meio do tiroteio e você deu a ré no carro do teu pai pra fugir foi uma delas – mas são os passos mínimos do balé da convivência que me fazem falta.

Você não largava a toalha na cama, mas a deixava pendurada na porta de qualquer jeito, toda amarfanhada, e ela continuava molhada do mesmo jeito. Mas você também tinha a mania de esticar a passadeira da cozinha porque tinha medo de que eu caísse. “Vocês parecem que têm o pé de enceradeira”, toda vez, e eu ria, tentando imaginar o que seria um pé de enceradeira. Você fazia café pra mim, o melhor café que eu já tomei em toda a minha vida. Eu sentada no sofá, mexendo no celular, e você vindo com aquela caneca do nosso enxoval – aquela branca, com uma rachadura visível e que você não deixava eu jogar fora – e o café fumegando (“não pode deixar a água ferver senão cozinha o pó”; cheio de métodos, o seu pequeno mundo caótico). E agora, que você se foi, quem vai fazer café pra mim?

Sua voz se levantava uma oitava quando falávamos de amor. Você franzia o nariz sem perceber, e fazia uma cara de menino envergonhado que você deve ter feito no primeiro amor. Eu só especulava tal evento, claro, sem o menor ciúme dessa menina, porque tenho certeza de que ela não percebeu, e nem você. Mas eu achava bonitinho quando você queria pedir alguma coisa, e encostava a testa na minha, olhava e falava baixo. Eu ouvia, ouvi todas as vezes, mas perguntava “o quê?” só pra você repetir novamente – às vezes mais de uma vez, porque gostava também do tom de sua voz quando se exasperava de leve (não brigando, essa melodia nunca me agradou). Eu conhecia cada nota, cada escala que sua voz solfejava na vida e as lia como partituras em braile. E não pude ouvir o seu compasso final.

Você ria das piadas da TV, de pessoas se estuporando nas tardes de domingo por tentarem coisas idiotas enquanto o Faustão desfilava seus bordões rotos. Nomeava cada cinema que São Gonçalo já teve (“Aqui em Santa Catarina era o Cine Floresta!”) toda vez que passava por um, apenas para dizer “esta cidade já teve onze cinemas de rua”, e sempre terminava falando do cinema da Venda da Cruz e sua sessão dupla de sexo e caratê. Dessa vez eu não ria apenas para te agradar, eu realmente achava engraçado os nomes dos filmes e suas combinações (“Era ‘Operação Dragão´ em letras maiores e ‘Minha cabrita, minha tara’ embaixo, dá pra acreditar?”, e eu ria e ria dentro do carro). Do que eu vou rir agora?

Os risos, as falas, as falhas, a coreografia cotidiana da rotina em que rodávamos no salão da vida, olhando para a orquestra a esperar a próxima música e não percebíamos os sublimes movimentos que fazíamos na pista lotada. Os gigantescos detalhes mínimos que constroem um amor tão bonito como o nosso, e que nos envolvia de forma tão aconchegante quanto um edredom velho – como aquele, do mesmo enxoval que a xícara rachada.

E agora, sem você aqui, a realidade é uma colcha esburacada, com a qual tento me cobrir para me proteger de todo frio do mundo.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

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