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Por três vezes

Por três vezes

Na primeira vez eu tinha catorze anos. Veja bem, catorze anos não é uma idade, é um evento longo que dura pelo menos uns mil dias. Na cômoda do teu quarto ainda tem um ou dois bonequinhos articulados, ao lado de um perfume da Boticário e de uma lâmina de barbear que seu tio engraçadinho te deu e que não verá qualquer tipo de pelo ainda por um bom tempo. Gibis da Marvel e revistas de videogame compartilham sorrateiramente o espaço com revistas de mulheres nuas (não tinha internet, o mundo era mais duro àquela época), e você ainda sonha com a textura de um mamilo sob o tecido sintético do sutiã – bom, acho que já deu pra entender.

Ela era bonitinha, até. Mais baixa do que eu (o que não era demérito, eu sempre fui um pouco mais alto do que deveria), cabelos pretos, vestidinho de alcinhas. A festa era no playground do prédio do tio engraçadinho e como não me foi dada a opção de ficar em casa e jogar bola na rua, cruzei a Avenida da Contorno pra lá, para festinha de meu primo pequeno em Icaraí, com a família. Coloquei uma roupa mais “homenzinho” (meu pai me levara na Impecável Maré Mansa, e agora eu tinha camisa de botão e sapato), e fiquei surpreso ao ver que a festa não era só crianças remelentas correndo como loucas para lá e para cá, tinha uma menina de minha idade. Irmã de algum daqueles pirralhos, estava enfadada girando o refrigerante no copo de plástico como se fosse scotch. “Você não quer brincar também?”, perguntei sarcasticamente (deve ter sido deboche ainda, sarcasmo requer treino) e me sentei ao lado dela. De camisa de botão, sapato e cinto, eu me sentia um imberbe Humphrey Bogart.

Ela apenas riu, e eu não quis dar espaço. Disse-lhe meu nome, e arranquei-lhe o dela. E só. Para não ficar o silêncio constrangedor, emendei um comentário tolo e genérico.

– Criança é bicho estranho, não é? Correndo e gritando o tempo inteiro, só para pra comer.

– É, parece que veio tudo de São Gonçalo, essas crianças mal educadas.

Gelei. E agora foi ela que não deu espaço.

– Você é de onde?

– Moro no Rio.

Eu não podia, não devia, não queria falar que era de São Gonçalo. Engraçado que agora, olhando no retrovisor – onde tudo é menor –  eu nem creio que isso seria empecilho para aqueles beijos furtivos na escada do prédio dela, mas na hora achei que seria minha sentença de derrota, ou de morte, e neguei São Gonçalo pela primeira vez.

Na segunda vez eu era adulto, e nem dei importância. “Onde você mora lá no Rio?”, disse a morena em Olinda, com saias de frevo e os dentes mais brancos que já vi. “Moro na Tijuca”, e foda-se. Dessa vez nem foi vergonha, ia dar trabalho mesmo pra explicar em pleno carnaval onde ficava o subúrbio do subúrbio.

Agora, a menina que parece com a Patrícia França em Renascer (minhas referências são tão velhas quanto eu) volta do toilette desse bar cheio de frescuras que a turma do escritório escalou para o happy hour, e eu tenho certeza de que ela vai perguntar. Já concordamos que precisamos ir para algum lugar mais tranquilo onde possamos conversar (balela, senha compartilhada entre adultos que querem se conhecer melhor – biblicamente, inclusive e inclusivo), e eu sei que ela vai perguntar.

E antes do galo cantar, eu negarei São Gonçalo mais uma vez.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

Na primeira vez eu tinha catorze anos. Veja bem, catorze anos não é uma idade, é um evento longo que dura pelo menos uns mil dias. Na cômoda do teu quarto ainda tem um ou dois bonequinhos articulados, ao lado de um perfume da Boticário e de uma lâmina de barbear que seu tio engraçadinho te deu e que não verá qualquer tipo de pelo ainda por um bom tempo. Gibis da Marvel e revistas de videogame compartilham sorrateiramente o espaço com revistas de mulheres nuas (não tinha internet, o mundo era mais duro àquela época), e você ainda sonha com a textura de um mamilo sob o tecido sintético do sutiã – bom, acho que já deu pra entender.

Ela era bonitinha, até. Mais baixa do que eu (o que não era demérito, eu sempre fui um pouco mais alto do que deveria), cabelos pretos, vestidinho de alcinhas. A festa era no playground do prédio do tio engraçadinho e como não me foi dada a opção de ficar em casa e jogar bola na rua, cruzei a Avenida da Contorno pra lá, para festinha de meu primo pequeno em Icaraí, com a família. Coloquei uma roupa mais “homenzinho” (meu pai me levara na Impecável Maré Mansa, e agora eu tinha camisa de botão e sapato), e fiquei surpreso ao ver que a festa não era só crianças remelentas correndo como loucas para lá e para cá, tinha uma menina de minha idade. Irmã de algum daqueles pirralhos, estava enfadada girando o refrigerante no copo de plástico como se fosse scotch. “Você não quer brincar também?”, perguntei sarcasticamente (deve ter sido deboche ainda, sarcasmo requer treino) e me sentei ao lado dela. De camisa de botão, sapato e cinto, eu me sentia um imberbe Humphrey Bogart.

Ela apenas riu, e eu não quis dar espaço. Disse-lhe meu nome, e arranquei-lhe o dela. E só. Para não ficar o silêncio constrangedor, emendei um comentário tolo e genérico.

– Criança é bicho estranho, não é? Correndo e gritando o tempo inteiro, só para pra comer.

– É, parece que veio tudo de São Gonçalo, essas crianças mal educadas.

Gelei. E agora foi ela que não deu espaço.

– Você é de onde?

– Moro no Rio.

Eu não podia, não devia, não queria falar que era de São Gonçalo. Engraçado que agora, olhando no retrovisor – onde tudo é menor –  eu nem creio que isso seria empecilho para aqueles beijos furtivos na escada do prédio dela, mas na hora achei que seria minha sentença de derrota, ou de morte, e neguei São Gonçalo pela primeira vez.

Na segunda vez eu era adulto, e nem dei importância. “Onde você mora lá no Rio?”, disse a morena em Olinda, com saias de frevo e os dentes mais brancos que já vi. “Moro na Tijuca”, e foda-se. Dessa vez nem foi vergonha, ia dar trabalho mesmo pra explicar em pleno carnaval onde ficava o subúrbio do subúrbio.

Agora, a menina que parece com a Patrícia França em Renascer (minhas referências são tão velhas quanto eu) volta do toilette desse bar cheio de frescuras que a turma do escritório escalou para o happy hour, e eu tenho certeza de que ela vai perguntar. Já concordamos que precisamos ir para algum lugar mais tranquilo onde possamos conversar (balela, senha compartilhada entre adultos que querem se conhecer melhor – biblicamente, inclusive e inclusivo), e eu sei que ela vai perguntar.

E antes do galo cantar, eu negarei São Gonçalo mais uma vez.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

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