Em uma manhã dessas sentado no banco do carro em mais um engarrafamento de costume na ponte Rio-Niterói enquanto me deslocava para o trabalho me deparei em mais um maluco devaneio. Me peguei pensando desde o começo da minha vida profissional, lá naquele sobradinho velho da Rua Teofilo Otoni onde meus olhos acompanhavam com detalhes cada comando dado pelo meu instrutor naquele teclado gigantesco e monitor verde que refletia nos seu óculos fundo de garrafa. Estava fascinado com aquele homem e quando crescesse era igual a ele que queria ser.
Então foquei naquele exemplo e comecei a galgar cada pedacinho de chão. Estudei, estudei mais um pouquinho, continuei estudando. Consegui meu diploma de nível superior e continuei estudando mais ainda. Foram anos e anos de estudos e praticas que me tornaram tão bom quanto meu guru. O tempo passou tão rápido quanto meus pensamentos que foram interrompidos por buzinas dos apressadinhos atrás de mim. – “PASSA POR CIMA!” – Enquanto acelero para acompanhar a procissão de carros me indago se valeu a pena tudo aquilo. Dos estágios do ciclo da vida que aprendemos na escola já passei por três agora é envelhecer e morrer. Por isso a minha indagação, a sete palmos de areia estarão comigo todo aquele conhecimento que adquiri durante esse tempo e todos aqueles anos que dei o meu suor trabalhando. Valeu a pena?
Sem saber minha pergunta seria respondida dias depois em um simples olhar acompanhado de um sorriso.
Em 1931, nascia a “Caixa Auxiliadora dos Pobres” criada pelos varejistas de São Gonçalo. Tinha o objetivo de dar aos mendigos uma esmola semanal, porem visto que muitos não tinham família nem lar, transformaram-na em “Asilo Amor ao Próximo” e para angariar recursos foi criado um “Livro de Ouro” e assim puderam comprar a sua sede bem no centro de São Gonçalo na Rua Feliciano Sodré, nº 04 localizada entre a prefeitura e a praça Zé Garoto.
No ano de 1969, o Asilo passou pelo pior momento de sua existência, com a morte e afastamento dos fundadores chegou a estar completamente abandonado com apenas 11 velinhos sofrendo de maus tratos. Foi então que um casal visitando o asilo vendo aquela situação resolveu ajudar. Criaram um “Departamento de Cooperadoras” com senhoras voluntarias que administram a instituição sem nenhum beneficio. No inicio apenas 15 e hoje perto de completar 50 anos com mais de 160 voluntarias que administram e trabalham para que não falte nada para as internas. Com a reforma do estatuto passou a ter a atual denominação, Instituição Cristã Amor ao Próximo (ICAP), e passou a trabalhar apenas com senhoras acima de 70 anos.
Meu contato com o ICAP foi numa sexta-feira fria quando minha sogra que faz trabalhos sociais em igrejas me pediu um favorzinho. Sabe como é, não se nega favor a sogra.
– Alex, você pode, por favor, entregar essas sacolas de agasalhos no Asilo Amor ao Próximo?
Ué, será que deu pane na vassoura? Pensei.
– Claro minha sogra, você não pede, você manda.
Deixando a brincadeira de lado, afinal eu adoro a minha sogra e nem sei por que fiz esse comentário da vassoura no texto. Deve ter sido para torna-lo mais bem humorado e atrativo. Enfim, eu não sabia, mas a minha ida ao ICAP seria inesquecível e cheia de aprendizado.
A viagem não foi longa, já que meus sogros moram a 10 minutos do centro de São Gonçalo e logo estava atravessando com aquelas sacolas nas mãos o portão verde onde na fachada lia-se Pavilhão de Bazares Beneficentes. Ao atravessar a porta um barulho ensurdecedor de máquina de costura e meus olhos passeando por todo ambiente só viam araras de roupas. Até que na segunda inspeção vejo no cantinho uma máquina de costura e um tufinho de cabelo branco como neve escondido por detrás.
– Boa tarde?
E o som da máquina continuava sem interrupção. Então quase gritando.
– Boa tarde, senhora?
E ali permaneceu sem nenhuma reação atrás da barulhenta maquina de costura. Caminhei até ficar de frente e pude perceber que se tratava de uma senhora na casa dos 60, mas com uma vitalidade no manejo daquela máquina. Suas mãos dançavam na bancada segurando uma peça de roupa ao som daquela medonha melodia ensurdecedora. Quanta pratica tinha aquela senhora. Com certeza se fosse eu no seu lugar já teria meus dedos furados antes mesmo de dar o primeiro ponto.
Fique ali admirando por quase 20 segundos, até que ela percebesse a minha presença. Então com a mão direta empurrou os óculos para pontinha do nariz inclinou a cabeça um pouco para baixo e me olhou por cima dos óculos.
– Boa tarde, seja muito bem vindo. Em que posso ajudar?
Aquela boas vindas mexeu comigo, há muito tempo não via uma recepção com tanta educação. Estamos vivendo um tempo de, E ai?, O que foi?, Qual é?
– Boa tarde, me chamo Alex e vim até aqui a pedido de minha sogra que pediu para que entregasse essas duas sacolas de agasalhos para doar ao asilo.
– Que bom, tem feito muito frio à noite e os agasalhos vão ajudar a esquentar quem precisa. A sua sogra é um anjo, Alex.
– Pois é, eu é que sei.
Ela sorri e com muita dificuldade levanta da cadeira e caminha até uma porta que dá para os fundos do bazar.
– Vamos lá Alex, vou te mostrar a nossa casa. A propósito me chamo Lourdes.
Quando atravesso a porta dos fundos do bazar me deparo com um jardim lindo, com muito verde e muitas flores. No centro do jardim um chafariz com plantas jiboias escorregando do centro da escultura.
– Chamamos de bosque da paz e largo do Chafariz. Dona Maria Amélia adorava cuidar de cada planta desse jardim. Acho até que tinha o dom de ouvi-las.
– Maria Amélia?
– Sim, Maria Amélia foi a grande responsável pela transformação da nossa casa, foi ela e seu marido que em visita criaram o Departamento de Cooperadores. Departamento que ela presidiu com muito vigor por 48 anos até o fim de sua vida no ano passado.
Lourdes foi subindo a caminho das instalações.
– Vamos lá, vou te mostrar onde as vovós descansam.
Um pequeno portão de ferro dividia uma varandão com várias cadeiras e poltronas.
– Aqui são três lares, os quartos são para quatro senhoras, com uma suíte. O primeiro lar é para as que precisam de cuidados especiais como banho e necessitam que as vistam. O segundo lar é para aquelas que são lúcidas, passeiam, tomam banho sozinha. E o terceiro é o que chamamos de “remanso” que é para as voluntárias que trabalharam na casa por mais de 10 anos, gratuitamente, e que depois dos 65 anos de idade precisam de um lugar para morar. Esse é o meu caso Alex.
Eu e minha cara nítida de espanto fomos caminhando até a varanda onde com apenas um gesto de mãos Lourdes me pediu para sentar ao lado de uma senhorinha, essa com mais idade. Parecia estar entrando na casa dos 90 anos.
– Então trabalha por 10 anos sem receber nada em troca Lourdes?
– Eu trabalho por exatos 30 anos e quem disse que não recebo nada em troca? Todos os dias recebo algo que dinheiro nenhum é capaz da pagar.
Ela olhou a senhora do meu lado, deu um sorriso e levantou mais uma vez com dificuldade.
– Alex, vou pegar um café pra gente. Enquanto isso faz companhia a Bethânia. Ah, ela é surda, mas se comunica muito bem.
Enquanto Lourdes se afastava, meus olhos foram ao encontro daquela que me fazia lembrar minha própria avó. E não precisou de nada a mais do que um simples olhar e um sorriso. Bethânia pegou na minha mão e mesmo sem pronunciar uma palavra, eu sabia o que ela estava me dizendo. Tinha razão Lourdes quando disse que Bethânia era muda, mas se comunicava muito bem. Ela estava me agradecendo. Agradecendo por estar ali ao lado dela, de conhecer a sua casa e compartilhar aquele momento.
Acho que estava sendo muito egoísta nos meus questionamentos, pois o que fiz foi trabalhar e ganhar experiencia para que pudesse dar o melhor para minha família. E os que trabalham e dão o melhor por pessoas que muitas vezes nem conhecem? Olho pro lado e vejo o exemplo dessas mulheres que passaram a sua vida trabalhando com amor em prol de outras pessoas. Vejo o exemplo da minha sogra que dedica o seu tempo recebendo e separando roupas e alimentos na igreja para repassa-los para quem precisa. Vejo o exemplo de Maria Amélia que até o seu ultimo dia esteve presente na vida de cada uma das internas do ICAP. Vejo o exemplo de Lourdes que dedicou 30 anos de sua vida costurando agasalhos para que muitas vovós não tivessem uma noite fria. E Bethânia? Essa trabalha com o sorriso e com olha e nos prepara para encarar uma vida regada de alegrias e esperanças e cheia de amor ao próximo. E mais uma vez meus devaneios são interrompidos pelas buzinas dos apressadinhos, mas dessa vez não estou nem ai. – “PASSA POR CIMA!”
É CLARO QUE VALEU A PENA.
Adorei conhecer este site. Parabéns!
Obrigado, Myrthes! Nós que agradecemos sua presença aqui no SIM. 🙂
Cara muito bacana essas matérias… parabéns!!
O Alex Wolbert é um dos nossos “áses” quando o assunto é história de São Gonçalo.
Me emocionei com a história do “Asilo Amor ao Próximo”. Parabéns pela sensibilidade!