MENU

Eu vi nosso amor na poeira – o casal do Engenho Pequeno

Eu vi nosso amor na poeira – o casal do Engenho Pequeno

Um soco na cara, no cinema, é sempre um acontecimento estético, com dinâmica e plasticidade admiráveis. Um soco desses na vida real é um acontecimento duro e de difícil digestão. Senti a aspereza dos nós dos dedos de Túlio atingindo o osso que fica debaixo do meu olho e o empurrando para baixo, espremendo a carne mole de meu rosto. “Neném” – ele balbuciou – “eu… eu…”. Sentada no chão do box, me apoiando no tanquinho, eu via sua cara transtornada diminuir pelo inchaço progressivo de meu olho direito. Nunca mais, Túlio. Nunca mais.

Quando entrei no banheiro apertado do apartamento onde morávamos no Engenho Pequeno, ele estava sentado no vaso, de bermudas e camisa do Fluminense, com a cara enfiada na pia. Debaixo do seu nariz, duas trilhas de poeira branca sobre o espelho retirado da parede. Debaixo do meu nariz, ele voltava a cheirar aquela merda. “Calma, Neném… Eu posso explicar…”, ficando de pé imediatamente e erguendo as mãos como uma criança flagrada roubando brigadeiro da mesa de aniversário. Explicar o caralho, eu disse, com duas oitavas acima na voz. Seis meses morando naquele muquifo, botando comida na mesa às custas de hora extra, saltando no Pita e andando toda a Mentor Couto sobre scarpins para não pagar mais uma passagem e agora esse desgraçado volta a cheirar? Peguei o espelho, levantei a tampa do vaso e assoprei aquela poeira maldita pra dentro da água, na louça manchada de ferrugem acobreada. Quando me virei, a mão fechada de Túlio preencheu meu campo de visão.

“Vamos pra casa, meu amor, são duas da manhã”. Descalço, molhado da garoa fina que caía sobre o Coelho, eu tentava arrastá-lo dali. Nenhum táxi quis entrar naquelas ruas de terra (“Na Cerâmica, senhora? Sem chances”), então eu fui andando, melando os scarpins que eu era obrigada a usar na Imobiliária. “Eu preciso… Preciso…”. As narinas estavam avermelhadas, agravadas pela coriza constante e pelas costas da mão ásperas que tentavam em vão limpar a sujeira entranhada na alma. “Neném…” Túlio estava apenas de bermuda jeans, sem carteira, tênis, camisa ou volição alguma. “Seu amor… Seu amor me salva…” E eu acreditei. Levei-o pra casa, empacotamos o que podíamos e no dia seguinte arrumamos a quitinete no Engenho Pequeno. “Aqui pelo menos ele não conhece ninguém”, eu pensava enquanto ele me prometia parar e arrumar outro emprego como o que perdera por causa do vício. Enquanto eu trabalhava para construir uma vida nova para nós dois. E isso durou apenas seis meses.

“Isso é cocaína, Túlio?”, falei com o saquinho vazio na mão. “Calma, Neném, eu posso explicar…”, ele disse pela primeira vez. Gostava de cheirar nos finais de semana, era apenas um “usuário recreativo”. “Quando a gente se conheceu eu estava cheirando, isso fez com que você gostasse menos de mim? O pó não altera minha personalidade, apenas me deixa mais ligado”, ele dizia. E eu acreditei, achava que meu amor poderia salvá-lo, e as contas da casa ainda não haviam começado a desmoronar. Túlio não comprava cuecas, meias ou camisas, o dinheiro não sobrava, mas não faltava para o essencial. Bom, pelo menos não naquela época.

O pessoal da Imobiliária tinha decidido fazer a festa de final de ano no Barril 2000. Era no Centro, tinha condução pra todo mundo e a música era boa. Lá que eu conheci Túlio, um pouco mais velho que eu, charmoso com suas mechas brancas nas têmporas e bem humorado. Bebemos incontáveis tulipas, e eu nem percebia que toda hora ele ia ao banheiro. “Cara estranho”, falou Samira, colega do trabalho. “Já vai embora, neném? Mas ainda tá cedo…”, disse ele pegando no meu braço. “Por que eu ficaria?”, “por isso aqui, ó”, e me deu um  beijo que tirou todo o ar que eu tinha nos pulmões, e minha vontade de voltar pra casa. “Samira, eu vou ficar mais um pouquinho…”, e fiquei ali, e na casa dele depois disso, por mais uns oito meses. A ideia era que fosse para sempre, como todo amor.

Mas mesmo o amor tem seu ponto de exaustão, e vira pó.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

Um soco na cara, no cinema, é sempre um acontecimento estético, com dinâmica e plasticidade admiráveis. Um soco desses na vida real é um acontecimento duro e de difícil digestão. Senti a aspereza dos nós dos dedos de Túlio atingindo o osso que fica debaixo do meu olho e o empurrando para baixo, espremendo a carne mole de meu rosto. “Neném” – ele balbuciou – “eu… eu…”. Sentada no chão do box, me apoiando no tanquinho, eu via sua cara transtornada diminuir pelo inchaço progressivo de meu olho direito. Nunca mais, Túlio. Nunca mais.

Quando entrei no banheiro apertado do apartamento onde morávamos no Engenho Pequeno, ele estava sentado no vaso, de bermudas e camisa do Fluminense, com a cara enfiada na pia. Debaixo do seu nariz, duas trilhas de poeira branca sobre o espelho retirado da parede. Debaixo do meu nariz, ele voltava a cheirar aquela merda. “Calma, Neném… Eu posso explicar…”, ficando de pé imediatamente e erguendo as mãos como uma criança flagrada roubando brigadeiro da mesa de aniversário. Explicar o caralho, eu disse, com duas oitavas acima na voz. Seis meses morando naquele muquifo, botando comida na mesa às custas de hora extra, saltando no Pita e andando toda a Mentor Couto sobre scarpins para não pagar mais uma passagem e agora esse desgraçado volta a cheirar? Peguei o espelho, levantei a tampa do vaso e assoprei aquela poeira maldita pra dentro da água, na louça manchada de ferrugem acobreada. Quando me virei, a mão fechada de Túlio preencheu meu campo de visão.

“Vamos pra casa, meu amor, são duas da manhã”. Descalço, molhado da garoa fina que caía sobre o Coelho, eu tentava arrastá-lo dali. Nenhum táxi quis entrar naquelas ruas de terra (“Na Cerâmica, senhora? Sem chances”), então eu fui andando, melando os scarpins que eu era obrigada a usar na Imobiliária. “Eu preciso… Preciso…”. As narinas estavam avermelhadas, agravadas pela coriza constante e pelas costas da mão ásperas que tentavam em vão limpar a sujeira entranhada na alma. “Neném…” Túlio estava apenas de bermuda jeans, sem carteira, tênis, camisa ou volição alguma. “Seu amor… Seu amor me salva…” E eu acreditei. Levei-o pra casa, empacotamos o que podíamos e no dia seguinte arrumamos a quitinete no Engenho Pequeno. “Aqui pelo menos ele não conhece ninguém”, eu pensava enquanto ele me prometia parar e arrumar outro emprego como o que perdera por causa do vício. Enquanto eu trabalhava para construir uma vida nova para nós dois. E isso durou apenas seis meses.

“Isso é cocaína, Túlio?”, falei com o saquinho vazio na mão. “Calma, Neném, eu posso explicar…”, ele disse pela primeira vez. Gostava de cheirar nos finais de semana, era apenas um “usuário recreativo”. “Quando a gente se conheceu eu estava cheirando, isso fez com que você gostasse menos de mim? O pó não altera minha personalidade, apenas me deixa mais ligado”, ele dizia. E eu acreditei, achava que meu amor poderia salvá-lo, e as contas da casa ainda não haviam começado a desmoronar. Túlio não comprava cuecas, meias ou camisas, o dinheiro não sobrava, mas não faltava para o essencial. Bom, pelo menos não naquela época.

O pessoal da Imobiliária tinha decidido fazer a festa de final de ano no Barril 2000. Era no Centro, tinha condução pra todo mundo e a música era boa. Lá que eu conheci Túlio, um pouco mais velho que eu, charmoso com suas mechas brancas nas têmporas e bem humorado. Bebemos incontáveis tulipas, e eu nem percebia que toda hora ele ia ao banheiro. “Cara estranho”, falou Samira, colega do trabalho. “Já vai embora, neném? Mas ainda tá cedo…”, disse ele pegando no meu braço. “Por que eu ficaria?”, “por isso aqui, ó”, e me deu um  beijo que tirou todo o ar que eu tinha nos pulmões, e minha vontade de voltar pra casa. “Samira, eu vou ficar mais um pouquinho…”, e fiquei ali, e na casa dele depois disso, por mais uns oito meses. A ideia era que fosse para sempre, como todo amor.

Mas mesmo o amor tem seu ponto de exaustão, e vira pó.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

2 COMENTÁRIOS

  1. Gostei pra caramba. A narrativa “de trás para frente” foi muito bem construída: você começa no fim e termina no início… mas com uma pequena e poderosa reflexão, de uma linha, que fecha todo o conto.

    A relação entre “Neném” e Túlio foi muito bem construída e desconstruída em um espaço tão curto, o que só melhora a leitura.

    Essa história parece ter sido escrita com a alma.

    Parabéns!

RESPONDA AO COMENTÁRIO

Escreva seu comentário aqui.
Por favor, insira seu nome aqui.

2 COMENTÁRIOS

  1. Gostei pra caramba. A narrativa “de trás para frente” foi muito bem construída: você começa no fim e termina no início… mas com uma pequena e poderosa reflexão, de uma linha, que fecha todo o conto.

    A relação entre “Neném” e Túlio foi muito bem construída e desconstruída em um espaço tão curto, o que só melhora a leitura.

    Essa história parece ter sido escrita com a alma.

    Parabéns!

RESPONDA AO COMENTÁRIO

Escreva seu comentário aqui.
Por favor, insira seu nome aqui.