Andressa era a menina mais bonita do Clélia Nanci. Destoava em meio a tantas outras, de todas as formas e tamanhos: tinha os cabelos loiro-acobreados, como ouro velho, sempre no volume e tamanho certos. Na minha cabeça Andressa devia dormir em pé, dava sete e meia da manhã e ela já estava toda linda na escola, com aquele cabelo liso escorrido armado, que ódio. Andressa era branca, lábios rosados e olhos azuis, toda diferente de todos nós, mestiçados e selvagens. Ninguém entendia muito bem o que Andressa fazia ali no meio da gente, alguém uma vez me disse que o pai dela tinha perdido muito dinheiro no Plano Collor, foram muito ricos e agora estavam exilados na Brasilândia. Na minha cabeça eu não via nada demais naquilo, moro aqui desde que nasci, mas dizem que pobre se acostuma a ficar rico rápido, porém o contrário é mais difícil – e deve ser mesmo.
Ela ficou mocinha antes de todas nós. Não demorou Andressa já tinha peito e quadril, o que começou a atrair principalmente meninos mais velhos das séries acima da nossa. Nos encontros do EAC ela brilhava, todos os rapazes babavam por Andressa, enquanto nós ficávamos relegadas às dinâmicas de grupo e sonhos de consumo distantes.
Encontrei Andressa outro dia, atravessando a rua em frente à prefeitura. Tantos anos se passaram, e ela continua linda, impossível de passar despercebida aos olhares masculinos. O mesmo cabelo, o mesmo sorriso, o mesmo corpo espetacular. Era final do dia, uma quinta-feira, e – por que não? – chamei Andressa para compartilhar um chopp no Rodobier. “Mas hoje é quinta-feira!”, ela ainda disse. E o que tem? Sexta-feira é dia de azaração, gosto de beber um dia antes, quando eu posso relaxar da semana e contemplar as pessoas sem ser importunada com olhares gulosos e telefones em guardanapos sujos.
“Eu nunca encontrei o amor”, foi uma das primeiras coisas que disse, assim que chegou o chopp. Quando uma pessoa lança um assunto com este grau de nada a ver dentro do papo, eu a deixo falar. O assunto pode parecer alheio, mas se a informação incoerente brota de inopinado, é porque ela pensa muito nisso e não tem ninguém com quem compartilhar.
E ela falou.
Contou-me que passara por três casamentos complicados nesses anos, tempestuosos e breves. Dois deles envolveram algum tipo de violência, e o primeiro lhe deixara um filho, que morava com o pai no exterior. Entre umas tulipas e outras, confidenciou: “Acho que nunca nenhum deles me amou de verdade. Quando conheciam quem realmente sou, o casamento acabava.”
Eu bebericava e murmurava “ahn hans” e “que issos”. Eu e meu marido (ex-marido, mas isso não vem ao caso) nos conhecemos bem antes de nos casarmos – e por isso casamos, inclusive. Ele não amou o que eu apresentava para o exterior, mas sim o que eu ofereci só a ele, e só ele conheceu. Mas não podia falar isso, de maneira alguma. Eu tinha à minha frente a menina mais bonita da escola, que esnobava a todos e jogava em nossas caras a nossa insignificância no quadro geral da ditadura da beleza estabelecida pela mídia. Eu devia até sentir um certo júbilo, ao ver o produto mais bonito da vitrine havia sido devolvido tantas vezes, mas não consegui. No lugar disso, uma queimação como uma azia se formava dentro de mim, um enjoo ao contrário ao qual eu não estava acostumada.
Mais algumas tulipas – entremeadas por uma carne frita em tiras e cebola – ela disse, já com a boca mole: “Eu sei que vocês todas me invejavam na escola, Damiana. Mas deixa eu te falar uma coisa: a beleza é um fardo.”
Eu ia falar que ser feio era pior, apenas como um chiste, mas não consegui. Só então reconheci o que eu estava sentindo. Era pena. Eu senti pena de Andressa.
Pagamos a conta e nos despedimos com o velho “vamos marcar alguma coisa”. No abraço apertado – e cheiroso – o enjoo voltou mais uma vez e eu entendi a frase dos vendedores ambulantes em uma profundidade que nem eles conhecem: “Moça bonita não paga – mas também não leva”.