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Ovelha desgarrada: a menina do Mutuá

Ovelha desgarrada: a menina do Mutuá

– Você está bem?

Óbvio que ela não estava. Os cabelos cortados à máquina, rente ao couro cabeludo, deixavam entrever algumas cicatrizes, novas e antigas. Olheiras profundas deixavam o azul de seus olhos opaco, como a pintura de um Corcel II estacionado há décadas na Av. 18 do Forte. Uma calça de moletom escondia uma provável magreza – logo Elaine, cujas formas sempre causaram inveja a todas nós – e um casaco que eu nunca tinha visto (e que já vivera dias melhores) se jogava por cima de uma camisa velha de futebol. Não dava nem pra saber se era um garoto ou uma garota.

– Estou indo… E o pessoal do Santa Mônica?

– Vão bem… Todos perguntam por você. – mentira, ninguém queria saber dela, só eu. Nem o Tiago queria ouvir falar no nome de Elaine (“Pára de falar nessa menina, ela escolheu o caminho dela e eu não quero minha namorada envolvida com esse tipo de gente”), em menos de um ano parecia que ela deixara de existir nas vidas de todos. Menos na minha.

Estudamos juntas desde o jardim. Era a minha melhor amiga, das panelinhas de plástico a confidências da puberdade. “A gente vai ser amigas para sempre, não vai?”, dizia Elaine antes das fotos abraçadas ou depois de corações partidos. Ninguém sabia os segredos que Elaine chorava em silêncio, ninguém via as marcas de cinto e mãos na sua carne branca. Nem eu.

Elaine tentava comer o copão de açaí que eu levara com alguma dignidade, mas a fome é um algoz espaçoso e desesperado. Não devia comer há dias. Tomei coragem e perguntei:

– Você volta?

– Não sei. Meu dente está sujo? – e sorriu, mostrando os dentes pretos em mais uma brincadeira antiga, só nossa. Ri também.

– Sua porca! E esse cachorrinho fofo?

– É o Bob. Coloquei essa correia velha pra servir de coleira e agora ele é meu. Não é, Bob? Não é? – o filhote de vira-lata se tremia todo de felicidade.

– É uma graça… Você está morando onde?

Pela primeira vez o semblante de Elaine se ensombreceu, e eu vi que havia feito a pergunta errada. A gente se encontrava uma vez na semana ali, na esquina da antiga escola (não do Santa Mônica, onde ninguém queria ser amigo de uma drogada refugiada do próprio lar). Eu levava açaí, algum dinheiro e um livro, mas havia perguntas que não podiam ser feitas. Sobre a droga, sobre o motivo da fuga, sobre a vida de agora.

Após um desconfortável silêncio, ela murmurou “acho melhor você ir andando. Tia Geiza deve estar preocupada”.

– Semana que vem então?

– Semana que vem, amiga. – e nos abraçamos. Tomei coragem e sussurrei em seu ouvido: “Amigas para sempre, lembra?”, apenas para abreviar o abraço e ver Elaine passar as costas da mão suja nos olhos.

Foi a última vez que vi minha melhor amiga. Toda semana apareço na mesma esquina, e levo o Harry Potter que ela havia me pedido.

Para sempre.

Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

– Você está bem?

Óbvio que ela não estava. Os cabelos cortados à máquina, rente ao couro cabeludo, deixavam entrever algumas cicatrizes, novas e antigas. Olheiras profundas deixavam o azul de seus olhos opaco, como a pintura de um Corcel II estacionado há décadas na Av. 18 do Forte. Uma calça de moletom escondia uma provável magreza – logo Elaine, cujas formas sempre causaram inveja a todas nós – e um casaco que eu nunca tinha visto (e que já vivera dias melhores) se jogava por cima de uma camisa velha de futebol. Não dava nem pra saber se era um garoto ou uma garota.

– Estou indo… E o pessoal do Santa Mônica?

– Vão bem… Todos perguntam por você. – mentira, ninguém queria saber dela, só eu. Nem o Tiago queria ouvir falar no nome de Elaine (“Pára de falar nessa menina, ela escolheu o caminho dela e eu não quero minha namorada envolvida com esse tipo de gente”), em menos de um ano parecia que ela deixara de existir nas vidas de todos. Menos na minha.

Estudamos juntas desde o jardim. Era a minha melhor amiga, das panelinhas de plástico a confidências da puberdade. “A gente vai ser amigas para sempre, não vai?”, dizia Elaine antes das fotos abraçadas ou depois de corações partidos. Ninguém sabia os segredos que Elaine chorava em silêncio, ninguém via as marcas de cinto e mãos na sua carne branca. Nem eu.

Elaine tentava comer o copão de açaí que eu levara com alguma dignidade, mas a fome é um algoz espaçoso e desesperado. Não devia comer há dias. Tomei coragem e perguntei:

– Você volta?

– Não sei. Meu dente está sujo? – e sorriu, mostrando os dentes pretos em mais uma brincadeira antiga, só nossa. Ri também.

– Sua porca! E esse cachorrinho fofo?

– É o Bob. Coloquei essa correia velha pra servir de coleira e agora ele é meu. Não é, Bob? Não é? – o filhote de vira-lata se tremia todo de felicidade.

– É uma graça… Você está morando onde?

Pela primeira vez o semblante de Elaine se ensombreceu, e eu vi que havia feito a pergunta errada. A gente se encontrava uma vez na semana ali, na esquina da antiga escola (não do Santa Mônica, onde ninguém queria ser amigo de uma drogada refugiada do próprio lar). Eu levava açaí, algum dinheiro e um livro, mas havia perguntas que não podiam ser feitas. Sobre a droga, sobre o motivo da fuga, sobre a vida de agora.

Após um desconfortável silêncio, ela murmurou “acho melhor você ir andando. Tia Geiza deve estar preocupada”.

– Semana que vem então?

– Semana que vem, amiga. – e nos abraçamos. Tomei coragem e sussurrei em seu ouvido: “Amigas para sempre, lembra?”, apenas para abreviar o abraço e ver Elaine passar as costas da mão suja nos olhos.

Foi a última vez que vi minha melhor amiga. Toda semana apareço na mesma esquina, e levo o Harry Potter que ela havia me pedido.

Para sempre.

Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

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