O Circuito de São Gonçalo (RJ) completou, no ano de 2014, 105 anos de história. Este artigo tem por objetivo refletir sobre o automobilismo brasileiro, sobretudo, acerca das nuances pelas quais motivaram a realização do Circuito de São Gonçalo, Rio de Janeiro, no ano de 1909, considerada a segunda corrida estruturada/oficial de automóveis no Brasil – já não mais, tão somente, meras disputas entre entusiastas, os quais contavam com poucos competidores e com breves percursos.
Não se trata aqui de fazer um estudo retido e detalhado a respeito do tema, mas de lançar um olhar sobre a história e tentar captar algo da série de tensões sociais, culturais, políticas e econômicas que marcaram o século XX, pontuando brevemente seus principais aspectos, contribuindo, assim, para uma visão panorâmica da discussão proposta.
“Logo no início do século XX são realizadas algumas corridas, duas das quais deixaram algum registro, ambas contando com poucos competidores e com breves percursos. Estima-se que foram desafiados entre entusiastas e que já tenham atraído um bom público, curiosos com a grande novidade que chegava ao país.
A primeira corrida de automóveis ocorreu em São Paulo, em 1902, tendo como local o Hipódromo da Mooca; foi vencida por José Paulinho Nogueira Filho. A segunda foi realizada no Rio de Janeiro, em 1905. Entre os nomes dos pilotos, sabemos da participação de Willy Borghoff e Primo Floresi. Essa corrida foi organizada, por sugestão de Pereira Passos, para comemorar as obras de remodelação do Largo do Machado.” (MELO, 2003, p.197)
A primeira corrida “oficial” de automóveis no Brasil foi o “Circuito de Itapecerica” em 26 de julho de 1908 em São Paulo (SP), a segunda foi o “Circuito de São Gonçalo” (RJ), realizado em 19 de setembro de 1909.
O circuito inicialmente escolhido para a prova, seria a Floresta da Tijuca no Rio de Janeiro, local onde se promoveu os primeiros encontros de automóveis do Brasil, mas o então prefeito, Souza Aguiar com apoio da Câmara Legislativa, foi contra sua realização na Capital Federal por achar que representava uma ameaça à população e conseguiu proibir a realização da mesma.
A interdição começou no governo anterior do Prefeito Pereira Passos, um dos grandes reformadores do traçado urbano da cidade.
Histórico de acidentes envolvendo automóveis gera desconfiança
No ano de 1897, com Bilac na direção, perderam o controle do veículo, que se chocou contra uma árvore, sem maiores danos para a saúde de ambos.
No mesmo ano, ocorrera outro acidente na cidade, com o carro de Álvaro Fernandes da Costa Braga, utilizado para transporte de mercadores de sua empresa Moinho de Ouro: burros que fracionavam um bonde, assustados, atacam o veículo. Já nos primeiros anos do século XX tem grande impacto na imprensa um atropelamento ocorrido no bairro da Tijuca.
A grande repercussão dos acidentes tem relação com os personagens envolvidos, importantes figuras da política e da cultura nacional naquela transição de séculos, nomes emblemáticos das mudanças em curso, mas também com as preocupações que cercaram a chegada dos primeiros automóveis, notadamente com a segurança dos transeuntes, inclusive porque as ruas não tinham qualquer forma de preparação para o tráfego.
O automóvel invadia as ruas onde antes pedestres passavam sem grande preocupação, a passos lentos. A cidade deveria ser ordenada e ele seria o novo rei, causando susto com seu barulho, sua imagem do poder. Na mesma medida, os carros fascinavam.
Automóvel do Clube do Brasil – Fundação
Automóvel Clube do Brasil foi idealizado e fundado por Alberto Santos Dummont em 27 de setembro de 1907, no Rio de Janeiro, instalado na antiga sede do Clube Guanabarense, em Botafogo. Dummont foi um dos primeiros proprietários de Automóvel do País, Aarão Reis, positivista e autor de vários artigos sobre a importância da eletricidade e das novas técnicas modernas, fora o primeiro Presidente, além de José do Patrocínio, Álvaro Fernandes da Costa Braga e Fernando Guerra Durval entre os menos famosos.
O Automóvel Clubes propõe-se, dentre outras coisas, a desenvolver, na população, o gosto pelo automobilismo.
A ida da prova para São Gonçalo
Em vista dessa proibição, o Automóvel Clube do Brasil, organizador da prova, a transferiu para São Gonçalo. A festa, há muito projetado pelo Automóvel Clube do Brasil, só pode ser realizada, graças à coadjuvação que o Clube teve do presidente do Estado do Rio, Dr. Alfredo Backer e seus auxiliares, e bem assim do capitalista e industrial, Visconde de Moraes e do prefeito de São Gonçalo, coronel Joaquim Serrado.
O prefeito do município de São Gonçalo, coronel Joaquim Serrado, fez todos os esforços para que a grande corrida tivesse extraordinário esplendor, cedendo, inclusive, sua Fazenda Engenho Novo, um dos principais trajetos do circuito.
Na estação da Companhia Cantareira – do capitalista e industrial Visconde de Moraes – foram vendidos os bilhetes para a arquibancada das Neves. A companhia Cantareira fez correr, no domingo, dia da corrida, bondes para as Neves, a fim de conduzir as pessoas que quisessem assistir à corrida. Além de oferecer o translado dos automóveis do Rio de Janeiro para Niterói via Baía de Guanabara através da Companhia das Barcas Ferry a qual era proprietário.
Domingo, 23 do mês passado, a cidade de Nictheroy foi testemunha de um espetáculo para ela inteiramente novo e que despertou vivíssima curiosidade nos seus habitantes. Logo as primeiras horas da manhã, das barcas que iam aqui do Rio desembarcavam muitos automóveis conduzidos todos eles, passageiros equipados como para uma corrida: guarda-pó, óculos, viseiras, etc.; davam a esses passageiros um acentuado cunho esportivo, dir-se-ia que a vizinha cidade se tinha um momento para outro transformado num desses centros de turismo e vilegiatura do sul da Europa.
Todos esses autos, após uma pequena demora na praça da estação tomaram a mesma direção, encaminhando-se para as Neves e com os escapamentos abertos e o buzinar contínuo das suas trompas, davam às ruas que percorriam uma nota alegre e de festa, chamando às janelas os habitantes entregues ao dominical repouso.
Quanto às inovações tecnológicas da época, o público tivera todas as informações das peripécias da corrida, por meio de telegramas e telefone, serviço especialmente organizado para esse fim de modo a facilitar notícias à plateia, em qualquer lugar da arquibancada.
Na instalação da arquibancada e no melhoramento dos caminhos, a diretoria do Automóvel Clube Brasil empregou todos os seus esforços, além disso, preparou um serviço médico, em diversos pontos, sob a direção de distintos clínicos.
Por fim, para este grande evento, que tivera despertado o mais franco entusiasmo nas rodas esportivas, por ser a primeira que se realiza oficialmente no Estado, inscreveram-se 16 amadores que disputaram as taças: “Estado do Rio de Janeiro e Visconde de Moraes” ofertadas pelo Presidente do Estado do Rio, Dr. Alfredo Backer e pelo capitalista e industrial, Visconde de Moraes.
A arte e o esporte correndo lado a lado. Os fotogramas mais antigos preservados, que se tem conhecimento no Brasil, referem-se exatamente a um evento esportivo: as primeiras corridas de carros organizadas pelo Automóvel Clube do Brasil, realizadas no dia 19 de setembro de 1909, em São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro (MELO, 2003, p.184).
Tais imagens foram captadas pelos irmãos Botelho, sendo Paulino o responsável pela câmera, ao passo que Alberto participava da corrida juntamente com Francisco Serrador, outro dos pioneiros do cinema nacional. Noronha destaca o empenho de deslocar a câmera para vários locais do circuito, esforço árduo, em função do peso do material na época. Com isso, temos um panorama geral do certame: os participantes, o público, os acidentes, o modelo dos carros e flagrantes do vencedor.
Circuito de São Gonçalo (RJ) – 1909
Para a corrida, só poderiam tomar parte, como condutores, como consta no regulamento da prova, os sócios do Automóvel Clube do Brasil, Automóvel Clube de São Paulo e Amadores, isto é, pessoas que não sejam profissionais ou mecânicos assalariados. As inscrições custavam 25$, para os sócios do Automóvel Clube do Brasil e do Automóvel Clube de São Paulo, e de 100$000, para as pessoas que não fizessem parte desses Clubes.
A corrida foi dividida em categorias e percursos. Para a categoria A bastava o nome do fabricante e a força do motor (não houve inscrições para esta categoria). Os veículos das categorias B, C, D, E, F deverão ter dois lugares ocupados. Os condutores e os que os acompanhavam eram os únicos responsáveis por qualquer acidente que possam causar ou de que possam ser vítimas. Pelo fato da inscrição, entende-se que os condutores concordam plenamente com todas estas condições e bem assim como o regulamento da estrada e mais regulamentos e avisos que lhes forem fornecidos e publicados até o dia da corrida.
A saída será por números tirados a sorte, na antevéspera da corrida, na sede do Clube, às 4 horas da tarde. Feito pela comissão e aprovado em conselho deliberativo de 16 de julho de 1909.
No que tange ao percurso da corrida, os automóveis concorrentes à corrida, partirão, um por vez, das Neves ao meio dia, seguindo por Porto Velho, São Gonçalo (centro), Alcântara, Laranjal, Calimbá, Rio d’Aldeia, Cabuçú, Engenho Novo, Monte Formoso, Sacramento, Pacheco e, novamente, Alcântara, de onde retornarão, pelas estradas do Laranjal, com destino ao Alcântara, São Gonçalo e Neves, fazendo percurso total de 72 km para os automóveis das categorias: E e F e 48 km para as categorias: B, C, D, como podemos observar na figura abaixo:
O Circuito de São Gonçalo, segundo os jornais da época, foi indubitavelmente, como diriam os antigos, a nota sensacional do ano. Como tal, a prova chamou para o outro lado da baía uma boa parte da população da Capital Federal, que começou as primeiras horas da manhã numa romaria, só à tarde cessada, para as “terras lendárias de São Gonçalo”. Ao meio dia, já repletíssimas, as imediações em frente às arquibancadas para os convidados ao Circuito, os bondes e os trens chegavam totalizando mais de 5.000 pessoas.
O Automóvel Clube do Brasil avisa ao público (da Capital) que quiser as corridas a realizar-se em São Gonçalo, domingo 19 de setembro, que construiu arquibancadas nas Neves, mas com número limitado de lugares devido à dificuldade do local. O trajeto far-se-á desta capital até às Neves pelas Barcas Ferry, e pelos bonds elétricos de Nictheroy até quase ao local das arquibancadas, ponto de partida e de chegada dos automóveis.
Lista dos Pilotos do Circuito de São Gonçalo (RJ) de 1909
1ª prova – Categoria F – Distância 72 km (2 voltas)
Partida: Jorge Haentjens (Lorraine-Dietrich – 80 HP) a 1 hora; Dr. João Borges Júnior (Fiat – 75 HP) 1 hora e 4 minutos; Dr. Francisco da Cunha Bueno Netto (Fiat – 50 HP) a 1 hora e 8 minutos; Gastão Ferreira de Almeida (Berliet – 60 HP) a 1 hora e 14 minutos.
Chegada: O primeiro carro a chegar foi do Dr. João Borges Júnior, que passou pela reta de chegada às 2 horas e 11 minutos, gastando, portanto 1 hora e 7 minutos; em seguida após mais uns minutos apenas apareceu Gastão de Almeida, marcando a sua chegada às 2 horas e 18 minutos e dois quintos. Os outros dois carros que faziam parte desta prova completaram o percurso com grande atraso.
Chegando após meia hora do segundo, o carro do Dr. Francisco da Cunha Bueno que durante o caminho teve três pneus furados e muito mais tarde apareceu o carro do Sr. Haetjens (L. Drietrich) com a carroceria queimada e enorme rombo no depósito de gasolina.
Foram, portanto, vencedores: Gastão de Almeida e Dr. João Borges Junior.
2ª prova – Categoria E – Bronze artístico – Distância 72 km (2 voltas).
Partida: F. Serrador (Diato-Clement– 30 HP) a 1 hora e 18 minutos; Raul Chagas (Fiat- 40 HP) a 1 hora e 21 minutos; Charles Meyer (Benz- 40 HP) a 1 hora e 24 minutos; C. Bosisio (Fiat – 40 HP) a 1 hora e 27 minutos. Não se apresentou para correr Oswaldo Sampaio.
Chegada: O primeiro a voltar foi o carro do Sr. Raul Chagas, que passou pelo vencedor às 2 horas e 38 minutos; depois chegou o Sr. C. Bosisio às 2 horas e 42 minutos. Não completaram o percurso: F. Serrador cujo motor do carro incendiou-se, ficando o seu condutor com uma das mãos ligeiramente queimada; Charles Meyer, que teve seu carro partido numa queda ao iniciar a estrada do Alcântara. O condutor que acompanhava o Sr. Meyer foi arremessado e, com a queda, feriu a perna direita, Sr. Meyer, contudo, teve apenas escoriações leves e arranhões na cabeça e no joelho.
3ª prova – Categoria D – Bronze artístico – Distância 48 km
Não se efetuou por só ter aparecido o Sr. José D’Orey. A comissão esportiva resolveu incluí-lo na prova seguinte.
4ª prova – Categoria C – (2ª turma) – Bronze artístico – distância 48 km.
Partida: José D’Orey (Berliet – 22 HP) as 8 horas e 19 minutos; Raul Berroguin (Renault – 14 HP) as 3 horas e 21 minutos; Honório Berroguin (F.N. – 18 HP) as 3 horas e 23 minutos. Não se apresentaram: G. Berbisco; F. de Oliveira e Fabio Prado.
Chegada: Chegou em primeiro, às 4 horas e 7 minutos o Sr. José D’Orey e Raul Berroguin. A outra prova do programa não se efetuou por não se ter apresentado o Sr. Joaquim Pontes, do Automóvel Clube de São Paulo.
O Circuito de São Gonçalo (RJ) de 1909, assim como podemos notar, não é uma prova puramente esportiva, pois que muito além de ver qual a melhor máquina em velocidade e resistência é, necessariamente, um meio de propaganda dos industriais, que tem no automóvel um condutor rápido dos produtos pelas estradas, que aos poucos, com o know-how da diretoria do Automóvel Clube do Brasil e o auxílio dos governos federal, estadual serão preparadas, ligando um e mais Estados à capital da República e tornando até mais fáceis as viagens por esses caminhos. O pano de fundo da corrida é, pois, o início de um problema que tem forçosamente de triunfar, porque o desenvolvimento do país o “reclama urgentemente”: o progresso pelo asfalto.
VASCONCELOS, W. S. São Gonçalo: 2ª Corrida Oficial de Automóveis do Brasil. Blog Tafulhar, 17.09.2014.
Curiosidades
• O primeiro automóvel tenha chegado ao Brasil pelas mãos de Alberto Santos Dumont, um dos precursores da aviação. Em 1890, adquire seu primeiro carro, um Peugeot.
• No Rio de Janeiro, o primeiro automóvel desembarcou alguns anos depois: em 1895, José do Patrocínio, líder abolicionista e importante personagem da política nacional, também importou o seu da Europa um Serpollet causando na população sensações semelhantes às observadas em São Paulo.
[…] Monumento que faz referência ao centenário da Corrida de São Gonçalo (1909-2009). Neves, São Gonçalo/RJ Fonte: https://simsaogoncalo.com.br/sao-goncalo/voce-sabia-que-2a-corrida-oficial-de-automoveis-do-brasil-f… […]