Ilustração: Paulo Rodrigues (ilustrepaulo)
Patrícia odiava usar salto. Parecia uma pata, se equilibrando em cima de duas lapiseiras 0.7 e puxando a saia pra baixo. Mas tinha que estar bonita.
“Samuel, 38, cavalheiro, gosta de livros, sertanejo universitário e gatos. Niterói, RJ”. A foto do Tinder era bonitinha, óculos discretos, ombros e sorrisos largos. Marcaram no Outback do Plaza. Patrícia tentou ainda jogar o encontro pro início do mês seguinte, mas os papos evoluíram e a urgência do encontro a pegou dura mesmo. Lisa. Porém, o que seriam mais vinte reais de Uber do Porto da Pedra para o Plaza, pra não ter que claudicar de salto pelo terminal de Niterói e chegar linda e cheirosa?
Sentou-se à mesa do canto, e pediu apenas um chá. Sentia-se incomodada com esse negócio de conhecer pessoas por aplicativos, mas qual era a solução? Trabalhava como uma louca pra não morrer de fome, não tinha condições e nem tempo de estabelecer relacionamento em baladinha noturna. E nem idade mais pra isso, né? Paciência zero com essa molecada de energético e carro do papai.
Terceiro refil de chá gelado, suor já fazendo brilhar o colo exposto pelo decote, e nada do Samuel. “A senhora quer fazer o pedido?”, “Não estou esperando alguém”; a garçonete fez um ligeiro muxoxo, Patrícia sentiu. E sentia fome também. “70 reais num bife? Deuzolivre!”, ela pensava, enquanto chupava o gelo do chá – que pelo menos era refil, pagava uma vez só.
E foi só o que ela pagou. Samuel enviou mensagem dizendo que havia tido um problema no serviço, e que infelizmente não poderia encontrá-la. “E se ele me viu aqui e não gostou?”, porque não bastava a conta estar no vermelho, a autoestima precisava acompanhar. Vinte reais pelo chá gelado, os vinte reais do Uber que a levariam de volta pra casa. “Antes não tivesse pagado os dez porcento”, mas foi tudo no cartão.
Patrícia então andou do Plaza até o terminal. Pedras portuguesas, ranhuras no asfalto, copos de guaravita, tudo era atrativo para os saltos e impropérios. O 526 ainda ficava na plataforma 5, então ainda teve que mancar pelos transeuntes que cortavam o terminal, uns voltando do trabalho, outros indo para a noite. O ônibus era aqueles da frota antiga, sem ar condicionado e, pra piorar, não tinha mais lugar sentado. Patrícia foi em pé sobre seus tão odiados saltos até o Porto da Pedra. Com fome.
Decidiu descer no Amarelinho. Abancou-se com decote e perfume, e pediu um angu – livrando-se logo dos saltos pra sentir o chão de cimento batido na meia-calça. Sua fome não cabia em um bife de setenta reais, mas o angu do Amarelinho, do alto de seus catorze reais – fora o chorinho! – seria suficiente, para engolir acompanhado de comiseração e auto piedade. Não tinha a meia luz do Outback, nem as paisagens desérticas da Austrália na parede, mas servia. O Amarelinho era iluminado por lâmpadas fluorescentes antigas, uma TV que passava algum jogo de futebol e mesas de plástico azuis com patrocínio de cerveja. Mas a comida era barata e decente. Fora a cerveja, sempre gelada.
– Acabou com a pimenta?
Patrícia acordou de sua pesca minuciosa dos miúdos que boiavam sobre o angu com aquela voz grave, leve sotaque nordestino. Ombros largos.
– Cuidado, essa tá forte, hein? – disse, sendo simpática.
– Eu prefiro assim, quando a pimenta é ruim.
– Não disse que era ruim, é gostosa.
– Não, ruim porque maltrata o cabra. – e deu um sorriso, mais largo que os ombros. Patrícia sorriu de volta, ele olhou para seus pés.
– Dia difícil?
– É… Alguns dias são assim. Tipo a pimenta que você gosta.
– Deixa eu pegar mais uma então pra aliviar. Posso me sentar contigo quando voltar?
Patrícia nem teve tempo de responder, o moço já havia saído na direção do balcão. Depois de uma viagem frustrada para uma Austrália fake, encontrava agora o sorriso que pelo qual procurava ali, no Porto da Pedra.
E descalça.
Damiana Duarte