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Amanhecer alcantarense – o amor sob os céus de Alcântara

Amanhecer alcantarense – o amor sob os céus de Alcântara

O casal parado na calçada parecia prestes a se separar por eras, como um soldado que embarca para lutar em solo estrangeiro e sua Penélope. Ele, alto, aparentando entrado nos “enta”, cabelos curtos salpicados de branco aqui acolá. Ela, um pouco mais nova e baixa que ele, ficava na ponta dos pés para tocar os lábios de seu amado. As mãos livres percorriam as costas, os olhos – quando se abriam – brilhavam em bumerangue.

Não era um cais, uma gare em Astapovo ou sequer uma rodoviária em Macondo. A manhã ainda não se decidia por nascer, e uma luminosidade baça começava a ganhar força no céu de Alcântara. Do ponto de ônibus cheio, transeuntes desprezavam totalmente a noção de espaço pessoal enquanto se acotovelavam em busca do coletivo que os levaria dali. Cedo ainda, e aquele monte de gente na rua, gente que deixava a cama e o café quentes para matar seu leão diário, tão longe de suas tocas. E no meio daquele batalhão proletário, o casal apaixonado.

Eu tentava não olhar, mirava o horroroso prédio do Pátio Alcântara à minha frente, plantado onde havia uma praça para enfeiar mais ainda um bairro já com deficiências estéticas. Vi Alcântara crescer com a Rua da Feira, e vi sua implosão urbana, sem ter para onde mais se expandir. Como um barco velho cheio de feios remendos, Alcântara ainda navegava, levando em seu seio milhares de trabalhadores e recebendo a baldeação de outros tantos a caminho da lida. Décadas ali, naquele ponto onde já houve (há muito tempo) uma padaria e agora era mais uma loja Marisa. Desde o começo daquela calçada (onde já houve um Max Box) até quase a delegacia, a ambição vigente era subir no coletivo e sair correndo dali, da feiura, da sujeira, do abandono. Menos para aquele casal.

Suas bochechas estavam vermelhas, e um sorriso pregado em rosa lhe causava covinhas. Nem olhava para o fluxo que vinha do viaduto, tinha a atenção voltada para seu amado. Ele, com uma bolsa de mão, calça jeans sapato camisa de botão e óculos, sussurrava coisas que renasciam nas covinhas do rosto dela, e olhares furtivos. Brilhavam, os dois, em meio à multidão. Cheguei mais perto e pude ouvir a despedida: “Você me liga assim que chegar?”, ela disse, enquanto ele  estendia o braço para dar sinal. “Ligo sim, meu amor”, “Já estou com saudades…”, “Eu também”. Trocaram um último beijo – não um beijo apaixonado, molhado e com os olhos fechados, mas um colar de lábios duradouro e olhares fixos, daqueles que só dão em quem se ama muito, e se ama há muito tempo.

Ele subiu no ônibus e a deixou suspirando, ainda dando tchau para as janelas repletas de caras sonolentas, esperando que o alcançasse. E, naquele ponto de ônibus matinal, seu suspiro não foi o único.

Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

O casal parado na calçada parecia prestes a se separar por eras, como um soldado que embarca para lutar em solo estrangeiro e sua Penélope. Ele, alto, aparentando entrado nos “enta”, cabelos curtos salpicados de branco aqui acolá. Ela, um pouco mais nova e baixa que ele, ficava na ponta dos pés para tocar os lábios de seu amado. As mãos livres percorriam as costas, os olhos – quando se abriam – brilhavam em bumerangue.

Não era um cais, uma gare em Astapovo ou sequer uma rodoviária em Macondo. A manhã ainda não se decidia por nascer, e uma luminosidade baça começava a ganhar força no céu de Alcântara. Do ponto de ônibus cheio, transeuntes desprezavam totalmente a noção de espaço pessoal enquanto se acotovelavam em busca do coletivo que os levaria dali. Cedo ainda, e aquele monte de gente na rua, gente que deixava a cama e o café quentes para matar seu leão diário, tão longe de suas tocas. E no meio daquele batalhão proletário, o casal apaixonado.

Eu tentava não olhar, mirava o horroroso prédio do Pátio Alcântara à minha frente, plantado onde havia uma praça para enfeiar mais ainda um bairro já com deficiências estéticas. Vi Alcântara crescer com a Rua da Feira, e vi sua implosão urbana, sem ter para onde mais se expandir. Como um barco velho cheio de feios remendos, Alcântara ainda navegava, levando em seu seio milhares de trabalhadores e recebendo a baldeação de outros tantos a caminho da lida. Décadas ali, naquele ponto onde já houve (há muito tempo) uma padaria e agora era mais uma loja Marisa. Desde o começo daquela calçada (onde já houve um Max Box) até quase a delegacia, a ambição vigente era subir no coletivo e sair correndo dali, da feiura, da sujeira, do abandono. Menos para aquele casal.

Suas bochechas estavam vermelhas, e um sorriso pregado em rosa lhe causava covinhas. Nem olhava para o fluxo que vinha do viaduto, tinha a atenção voltada para seu amado. Ele, com uma bolsa de mão, calça jeans sapato camisa de botão e óculos, sussurrava coisas que renasciam nas covinhas do rosto dela, e olhares furtivos. Brilhavam, os dois, em meio à multidão. Cheguei mais perto e pude ouvir a despedida: “Você me liga assim que chegar?”, ela disse, enquanto ele  estendia o braço para dar sinal. “Ligo sim, meu amor”, “Já estou com saudades…”, “Eu também”. Trocaram um último beijo – não um beijo apaixonado, molhado e com os olhos fechados, mas um colar de lábios duradouro e olhares fixos, daqueles que só dão em quem se ama muito, e se ama há muito tempo.

Ele subiu no ônibus e a deixou suspirando, ainda dando tchau para as janelas repletas de caras sonolentas, esperando que o alcançasse. E, naquele ponto de ônibus matinal, seu suspiro não foi o único.

Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

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