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Formandos de 1996 – As Realidades Gonçalenses

Formandos de 1996 – As Realidades Gonçalenses

A menina que tinha cheiro de pássaros casou com o menino que lia quadrinhos do Demolidor na hora do recreio, sob o pé de manga. A menina com cheiro de pássaros usava um casaco de mangas compridas maiores que sua mão, e todo mundo achava que ela se cortava ou tinha alguma queimadura, mas ninguém nunca pode ter certeza porque ela usava aquele casaco azul de listras mesmo quando estava calor. O menino que lia os quadrinhos do Demolidor debaixo do pé de manga apanhava de vez em quando por não interagir com as outras crianças, até que um dia ele pegou um bastão e foi na direção do gordo e deu uma pancada em seu joelho que o fez cair no chão da quadra de terra. Não era nenhum super-herói, o menino que lia quadrinhos do Demolidor, e o gordo levantou e o fez comer a própria cueca.

O gordo foi trabalhar na oficina do pai e nunca se casou. Em suas unhas roídas quase no sabugo a graxa parecia tatuada pra nunca mais sair. Poucos além de mim foram falar com ele, e pude perceber um sorriso humilde que eu nem sequer imaginara existir, ele geralmente exibia todos os dentes da boca quando batia nos meninos menores – inclusive quando fez o menino que lia Demolidor engolir sua própria cueca, ou quando quebrou o relógio novo da garota crente.

A garota crente levou seus três filhos mas nenhum dos maridos. O menino que tinha bigode aos 13 anos agora ostentava uma taturana em cima do lábio superior – em contraste com seus esparsos cabelos encanecidos – e conversava alegremente perto da mesa de frios com a garota que tinha uma perna menor do que a outra. Duas das três tchotchomeris conversavam com os rapazes do futebol – a outra havia morrido de câncer ainda na faculdade. Só andavam juntas, iam aos bailes juntas e escutavam funk (“tchotchomeri”, naquele tempo). Passaram no vestibular e cursaram direito juntas. O craque do futebol trabalhava em uma loja de materiais de construção, e o goleiro que ficara invicto durante todo intercolegial de 95 até tomar o gol da final agora fazia bicos como eletricista.

Eu, que nunca fora bonita, popular ou inteligente, circulava por todos os grupos com desenvoltura. Tive que vender os doces que minha mãe fazia no último ano de segundo grau e acabei tendo uma boa relação com todos, todos aqueles adultos em fase de formação e que achavam que os problemas da adolescência durariam pra sempre. Naquele pátio de terra da escola estadual, moldávamos a ferro e fogo social as nossas personalidades, nunca imaginando os anos que ainda teríamos pela frente, ou que a vida era tão mais dura. Os rapazes da banda bebendo o velho licor de menta no canto, a filha da inspetora com suas bijuterias vistosas dando mole para o professor de Geografia (que ainda usava barba de revolucionário, apesar do cabelo parecer ter fugido pra Cuba), o CDF solitário que continuava no canto lendo alguma coisa – desta vez, e-mails no celular.

Olhava a todos, e só conseguia pensar no amor que sentia por aquelas pessoas, que participaram de minha vida em um momento tão importante e que haviam se perdido por esse mundão de Deus, agora todos reunidos sob o mesmo teto, sob as mesmas brincadeiras antiquadas que nos faziam sentir em casa. Até que Reginaldo me chamou na mesa de frios com um sorriso aquecido, e eu esqueci todos os devaneios e lembrei apenas daquele primeiro beijo sob a mangueira, quando o menino que lia quadrinhos do Demolidor faltara porque estava doente.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

A menina que tinha cheiro de pássaros casou com o menino que lia quadrinhos do Demolidor na hora do recreio, sob o pé de manga. A menina com cheiro de pássaros usava um casaco de mangas compridas maiores que sua mão, e todo mundo achava que ela se cortava ou tinha alguma queimadura, mas ninguém nunca pode ter certeza porque ela usava aquele casaco azul de listras mesmo quando estava calor. O menino que lia os quadrinhos do Demolidor debaixo do pé de manga apanhava de vez em quando por não interagir com as outras crianças, até que um dia ele pegou um bastão e foi na direção do gordo e deu uma pancada em seu joelho que o fez cair no chão da quadra de terra. Não era nenhum super-herói, o menino que lia quadrinhos do Demolidor, e o gordo levantou e o fez comer a própria cueca.

O gordo foi trabalhar na oficina do pai e nunca se casou. Em suas unhas roídas quase no sabugo a graxa parecia tatuada pra nunca mais sair. Poucos além de mim foram falar com ele, e pude perceber um sorriso humilde que eu nem sequer imaginara existir, ele geralmente exibia todos os dentes da boca quando batia nos meninos menores – inclusive quando fez o menino que lia Demolidor engolir sua própria cueca, ou quando quebrou o relógio novo da garota crente.

A garota crente levou seus três filhos mas nenhum dos maridos. O menino que tinha bigode aos 13 anos agora ostentava uma taturana em cima do lábio superior – em contraste com seus esparsos cabelos encanecidos – e conversava alegremente perto da mesa de frios com a garota que tinha uma perna menor do que a outra. Duas das três tchotchomeris conversavam com os rapazes do futebol – a outra havia morrido de câncer ainda na faculdade. Só andavam juntas, iam aos bailes juntas e escutavam funk (“tchotchomeri”, naquele tempo). Passaram no vestibular e cursaram direito juntas. O craque do futebol trabalhava em uma loja de materiais de construção, e o goleiro que ficara invicto durante todo intercolegial de 95 até tomar o gol da final agora fazia bicos como eletricista.

Eu, que nunca fora bonita, popular ou inteligente, circulava por todos os grupos com desenvoltura. Tive que vender os doces que minha mãe fazia no último ano de segundo grau e acabei tendo uma boa relação com todos, todos aqueles adultos em fase de formação e que achavam que os problemas da adolescência durariam pra sempre. Naquele pátio de terra da escola estadual, moldávamos a ferro e fogo social as nossas personalidades, nunca imaginando os anos que ainda teríamos pela frente, ou que a vida era tão mais dura. Os rapazes da banda bebendo o velho licor de menta no canto, a filha da inspetora com suas bijuterias vistosas dando mole para o professor de Geografia (que ainda usava barba de revolucionário, apesar do cabelo parecer ter fugido pra Cuba), o CDF solitário que continuava no canto lendo alguma coisa – desta vez, e-mails no celular.

Olhava a todos, e só conseguia pensar no amor que sentia por aquelas pessoas, que participaram de minha vida em um momento tão importante e que haviam se perdido por esse mundão de Deus, agora todos reunidos sob o mesmo teto, sob as mesmas brincadeiras antiquadas que nos faziam sentir em casa. Até que Reginaldo me chamou na mesa de frios com um sorriso aquecido, e eu esqueci todos os devaneios e lembrei apenas daquele primeiro beijo sob a mangueira, quando o menino que lia quadrinhos do Demolidor faltara porque estava doente.

Ilustração: Paulo Rodrigues (@ilustrepaulo)
Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
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