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Outro jeito de ver São Gonçalo

Outro jeito de ver São Gonçalo

Artigo inspirado na frase “Outra forma de ver o Mundo. Outro jeito de ler São Gonçalo”, repetida por André Correia, ativista político e cultural gonçalense.

Estive em uma cidade especial hoje, onde o tédio não existe. Nela habita um povo sem instrução, sem luxo, que compra, vende e troca ao ar livre aquilo que precisa para sobreviver, sem parar um minuto.

A identidade local foi marcada há décadas pela agitação necessária para superar a pobreza. Da inquietação nasceu um tipo de caos particular absolutamente imprevisível para os novos moradores sem intimidade com o território. Promoções de alimentos vendidos na calçada, sem fiscalização sanitária, acontecem de repente, por exemplo. Motoristas inopinados atravessam multidões em alta velocidade.

Seus habitantes dependem sinceramente uns dos outros e nisto há beleza humana indiscutível, não na carência de infraestrutura, emprego e renda. Eles se olham nos olhos sem reservas, quase se beijam ou se batem quando conversam, tão intensa é sua ligação.

O baixo desenvolvimento educacional não impede o interesse político, nem o esforço para formar opinião própria. Por ano são lançadas dezenas de livros em eventos mensais de poesia, arte e cultura ou de maneira completamente independente. Nenhum artista deixa de praticar sua paixão, vencem as dificuldades que encontram naturalmente (não sem a costumeira reclamação pública).

Lanchonetes e restaurantes não faltam, nem quem distribua comida de graça aos necessitados. Tendências gastronômicas, novas hamburguerias e food trucks são criados mensalmente, barbearias temáticas se espalharam pelos bairros.

A criança brinca na rua descalça, experimenta a vida, aprende. O adulto joga bola nos fins de semana, encontra os amigos nos bares, não conhece a solidão.

A alma festeira deste lugar pode ser tocada no ar quando milhares de pessoas se reúnem no festival anual de pipas, no tapete de Corpus Christi, no carnaval de rua. Como não tem transporte de massa, mas sua população ultrapassa um milhão, o povo se reinventou, os mototaxistas cortam as esquinas em duas direções ao mesmo tempo, os modernos serviços de carona são um sucesso popular.

Alguns pontos turísticos causam inveja às maiores cidades históricas brasileiras. Ambos construídos no século 17, tem uma fazenda, considerada marco na arquitetura colonial brasileira, e do outro lado da cidade fica uma das mais antigas capelas do país. A região é banhada pelo mar, outro privilégio, e possui parte de uma área de proteção ambiental imensa, rica em biodiversidade.

A terra é quente, muito quente, como a essência ancestral da vida. Seria perfeita se a classe política percebesse seus tesouros, o que não esmorece a maioria honesta que vive lá.

Mário Lima Jr.
Mário Lima Jr.http://mariolimajr.com
Moro em São Gonçalo e toda semana escrevo sobre minha relação com a cidade.

Artigo inspirado na frase “Outra forma de ver o Mundo. Outro jeito de ler São Gonçalo”, repetida por André Correia, ativista político e cultural gonçalense.

Estive em uma cidade especial hoje, onde o tédio não existe. Nela habita um povo sem instrução, sem luxo, que compra, vende e troca ao ar livre aquilo que precisa para sobreviver, sem parar um minuto.

A identidade local foi marcada há décadas pela agitação necessária para superar a pobreza. Da inquietação nasceu um tipo de caos particular absolutamente imprevisível para os novos moradores sem intimidade com o território. Promoções de alimentos vendidos na calçada, sem fiscalização sanitária, acontecem de repente, por exemplo. Motoristas inopinados atravessam multidões em alta velocidade.

Seus habitantes dependem sinceramente uns dos outros e nisto há beleza humana indiscutível, não na carência de infraestrutura, emprego e renda. Eles se olham nos olhos sem reservas, quase se beijam ou se batem quando conversam, tão intensa é sua ligação.

O baixo desenvolvimento educacional não impede o interesse político, nem o esforço para formar opinião própria. Por ano são lançadas dezenas de livros em eventos mensais de poesia, arte e cultura ou de maneira completamente independente. Nenhum artista deixa de praticar sua paixão, vencem as dificuldades que encontram naturalmente (não sem a costumeira reclamação pública).

Lanchonetes e restaurantes não faltam, nem quem distribua comida de graça aos necessitados. Tendências gastronômicas, novas hamburguerias e food trucks são criados mensalmente, barbearias temáticas se espalharam pelos bairros.

A criança brinca na rua descalça, experimenta a vida, aprende. O adulto joga bola nos fins de semana, encontra os amigos nos bares, não conhece a solidão.

A alma festeira deste lugar pode ser tocada no ar quando milhares de pessoas se reúnem no festival anual de pipas, no tapete de Corpus Christi, no carnaval de rua. Como não tem transporte de massa, mas sua população ultrapassa um milhão, o povo se reinventou, os mototaxistas cortam as esquinas em duas direções ao mesmo tempo, os modernos serviços de carona são um sucesso popular.

Alguns pontos turísticos causam inveja às maiores cidades históricas brasileiras. Ambos construídos no século 17, tem uma fazenda, considerada marco na arquitetura colonial brasileira, e do outro lado da cidade fica uma das mais antigas capelas do país. A região é banhada pelo mar, outro privilégio, e possui parte de uma área de proteção ambiental imensa, rica em biodiversidade.

A terra é quente, muito quente, como a essência ancestral da vida. Seria perfeita se a classe política percebesse seus tesouros, o que não esmorece a maioria honesta que vive lá.

Mário Lima Jr.
Mário Lima Jr.http://mariolimajr.com
Moro em São Gonçalo e toda semana escrevo sobre minha relação com a cidade.

2 COMENTÁRIOS

  1. Como costumo dizer, a subalternidade derramada sobre São Gonçalo – tantas vezes, com diligente suporte da classe política local – não é um destino. Se esse é o lugar onde criamos nossos filhos, tem de ser nada menos que o melhor lugar do mundo. Dentre tantas outras demandas subjetivas e intersubjetivas, São Gonçalo precisa ser um território justificado. Penso que é algo que podemos aprender com os catadores expulsos do lixão de Itaóca, a viver apesar do abandono, da crueldade cintilante que brota de todo o nosso aparelho institucional republicano e, ainda assim, lutar pelo espaço onde se vive por entendê-lo como fundamental à existência.

    Parabéns, Mário, pelo empenho na construção de uma identidade territorial genuinamente gonçalense.

    #sãogonçapower

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  1. Como costumo dizer, a subalternidade derramada sobre São Gonçalo – tantas vezes, com diligente suporte da classe política local – não é um destino. Se esse é o lugar onde criamos nossos filhos, tem de ser nada menos que o melhor lugar do mundo. Dentre tantas outras demandas subjetivas e intersubjetivas, São Gonçalo precisa ser um território justificado. Penso que é algo que podemos aprender com os catadores expulsos do lixão de Itaóca, a viver apesar do abandono, da crueldade cintilante que brota de todo o nosso aparelho institucional republicano e, ainda assim, lutar pelo espaço onde se vive por entendê-lo como fundamental à existência.

    Parabéns, Mário, pelo empenho na construção de uma identidade territorial genuinamente gonçalense.

    #sãogonçapower

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