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Translúcida: a travesti do porto novo, respeito e visibilidade trans

Translúcida: a travesti do porto novo, respeito e visibilidade trans

– Muito obrigada, senhor, tenha um bom dia.

O cliente levantou a cabeça espantado, olhando pra mim como se não tivesse me visto antes. Comum, aquilo. Eles passam tão depressa as suas compras e sequer se importam em dar bom dia pro caixa. Eu devia ficar quieta. O tom de voz grave não combina, e daí olham como se um cachorro tivesse acabado de fugir e parasse na frente deles. Risinhos sem graça, lábios comprimidos, boca retorcida. “O-o-obriga-gado”, dizem.

De vez em quando um moleque imbecil que grita quando sai do mercado: “Traveco!”

Esse papo de respeito, visibilidade trans e homofobia ainda não chegou no Supermercado Nazareth (hoje Supermarket). Cresci em um tempo em que era normal apanhar por ser diferente. Na rua, na escola, em casa. A palavra bullying sequer existia, e respeito era usado apenas para os pais de famílias. Simultâneas, até – e a aberração era eu. Até os dezesseis anos eu era o “viadinho”, então saí de casa e passei a ser o travesti. Morei no interior da Bahia, vivi os piores cenários possíveis para um homossexual nos anos 90 – prostíbulos, drogas, caminhoneiros e AIDS – e sobrevivi a todos eles. Voltei para o Porto Novo depois que meu pai morreu, definhando naquela casa verde onde ele tanto me espancara para aprender a ser homem, e arrumei emprego de operador de caixa. Enquanto tantos buscam visibilidade, eu quero é ser invisível. Menos para o Malvino Salvador.

Não, claro que não é o ator – o que o Malvino Salvador de verdade faria aqui no Porto Novo? Há uns três meses ele vinha no mercado quase toda semana, devia ser novo aqui. Não fazia compras de mês, quase ninguém faz compras de mês no mercadinho do bairro; comprava coisas urgentes como alho, suco e aquele arroz que acabou. E eu ficava olhando de rabo de olho pra ele, aquele moço – não tão moço – que parecia o Malvino Salvador, e que pra mim era.

– Caraca, moleque, o caixa é travesti! – a voz me tirou da contemplação secreta que eu fazia de meu Malvino escolhendo tangerina.

– Boa noite, senhores.

– Olha a voz dele! – falou rindo o outro pirralho, camisa de banda. Deviam estar indo beber essa vodka barata sentados na calçada do Metallica Pub.

– Posso ajuda-los em mais alguma coisa? – toda uma vida de chacota, de ódio, de desprezo. Eu já devia estar acostumada, mas ainda doía como da primeira vez.

– Pode sim… Ele quer um beijinho!

– Eu, hein! Tô fora!

– Que isso, cara! O viado é coroa mas é bonitinho! Aqui, dá um beijinho nele, dá…

Antes que ele esticasse a mão e me tocasse um braço forte e peludo o impediu.

– Peça desculpas para a moça.

– Ih, que isso, cara?

– AGORA. – Meu Malvino, mais Salvador do que nunca, olhou pra mim e sorriu com os olhos. Se ninguém me visse nunca mais, não importaria.

Ele me viu.

Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

– Muito obrigada, senhor, tenha um bom dia.

O cliente levantou a cabeça espantado, olhando pra mim como se não tivesse me visto antes. Comum, aquilo. Eles passam tão depressa as suas compras e sequer se importam em dar bom dia pro caixa. Eu devia ficar quieta. O tom de voz grave não combina, e daí olham como se um cachorro tivesse acabado de fugir e parasse na frente deles. Risinhos sem graça, lábios comprimidos, boca retorcida. “O-o-obriga-gado”, dizem.

De vez em quando um moleque imbecil que grita quando sai do mercado: “Traveco!”

Esse papo de respeito, visibilidade trans e homofobia ainda não chegou no Supermercado Nazareth (hoje Supermarket). Cresci em um tempo em que era normal apanhar por ser diferente. Na rua, na escola, em casa. A palavra bullying sequer existia, e respeito era usado apenas para os pais de famílias. Simultâneas, até – e a aberração era eu. Até os dezesseis anos eu era o “viadinho”, então saí de casa e passei a ser o travesti. Morei no interior da Bahia, vivi os piores cenários possíveis para um homossexual nos anos 90 – prostíbulos, drogas, caminhoneiros e AIDS – e sobrevivi a todos eles. Voltei para o Porto Novo depois que meu pai morreu, definhando naquela casa verde onde ele tanto me espancara para aprender a ser homem, e arrumei emprego de operador de caixa. Enquanto tantos buscam visibilidade, eu quero é ser invisível. Menos para o Malvino Salvador.

Não, claro que não é o ator – o que o Malvino Salvador de verdade faria aqui no Porto Novo? Há uns três meses ele vinha no mercado quase toda semana, devia ser novo aqui. Não fazia compras de mês, quase ninguém faz compras de mês no mercadinho do bairro; comprava coisas urgentes como alho, suco e aquele arroz que acabou. E eu ficava olhando de rabo de olho pra ele, aquele moço – não tão moço – que parecia o Malvino Salvador, e que pra mim era.

– Caraca, moleque, o caixa é travesti! – a voz me tirou da contemplação secreta que eu fazia de meu Malvino escolhendo tangerina.

– Boa noite, senhores.

– Olha a voz dele! – falou rindo o outro pirralho, camisa de banda. Deviam estar indo beber essa vodka barata sentados na calçada do Metallica Pub.

– Posso ajuda-los em mais alguma coisa? – toda uma vida de chacota, de ódio, de desprezo. Eu já devia estar acostumada, mas ainda doía como da primeira vez.

– Pode sim… Ele quer um beijinho!

– Eu, hein! Tô fora!

– Que isso, cara! O viado é coroa mas é bonitinho! Aqui, dá um beijinho nele, dá…

Antes que ele esticasse a mão e me tocasse um braço forte e peludo o impediu.

– Peça desculpas para a moça.

– Ih, que isso, cara?

– AGORA. – Meu Malvino, mais Salvador do que nunca, olhou pra mim e sorriu com os olhos. Se ninguém me visse nunca mais, não importaria.

Ele me viu.

Damiana Duarte
Damiana Duartehttp://damianaduarte.blogspot.com.br/
Damiana Duarte é escritora e poetisa. Cresceu e sobrevive do amor que há em São Gonçalo.

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