A Emancipação de Alcântara é um assunto que já deveria ter sido superado pelos gonçalenses, desde 1995. Ainda sim, vez ou outra, essa história é ressuscitada, como aconteceu em 30 de maio de 2019, na Câmara Municipal de São Gonçalo.
A crença de achar a solução perfeita, criando algo do zero, é um sonho frequente nas mentes humanas. Afinal, propor mágicas é bem mais fácil que buscar o consenso na cidade de mais de 1 milhão de habitantes.
Mas desta vez, o discurso de um vereador foi além. Mais que a emancipação de Alcântara, foi sugerido também que Neves e Santa Isabel se tornassem bairros. A ideia por trás desse discurso é simples: criar municípios é ter novos CNPJs municipais, sem dívidas.
Na teoria é perfeito! Na prática, estamos longe disso. O argumento é que os territórios criados estariam aptos a fazer parcerias com o governo federal. Diferente de hoje, que estamos inundados em dívidas. Palmas!!! Que ideia excelente, certo? Hum… a vida real não é tão bela assim.
Um município pobre ou 2 miseráveis?
Quando a campanha da emancipação aconteceu, eu tinha apenas 9 anos. Ainda sim, lembro de uma frase-chave que vi em alguns outdoors pela cidade: “Querem transformar um município pobre em dois miseráveis.”
A proposta de divisão territorial tinha o Rio Alcântara como limítrofe natural. No dia da votação, dos 215.457 eleitores aptos a votar, apenas 30.372 compareceram. Foram 29.294 sufrágios a favor da emancipação de Alcântara. Entretanto, o quórum mínimo exigido era de maioria simples, 107.730. Mas apenas 14% das pessoas se mobilizaram até às urnas.
Não dá para dizer o que aconteceria se tivéssemos nos separado em 1995. Um ano antes, foi lançado o plano real, a estabilização econômica e o ciclo que conhecemos. O Brasil mudou demais nessas últimas 3 décadas. Poderia ter dado certo. Ou completamente errado. Nunca saberemos.
Mas, e hoje?
Na emancipação de Alcântara, São Gonçalo não assumiria as dívidas sozinho
Dado que um dos argumentos apresentados na Câmara Municipal (maio/2019) foi a possível inexistência de dívidas dos novos municípios, faço uma pergunta: se puséssemos essa proposta de emancipação pra frente, com quem ficariam estas mesmas dívidas?
Há quem ache que a “São Gonçalo Original”, a matriz, era quem deveria arcar com esse problema. Nesse cenário, as contas iriam para o buraco em meses, uma vez que a arrecadação de um município retalhado cairia. Logicamente, com esse argumento apresentado aos munícipes – que pagariam a conta – nenhum acordo seria fechado.
Outro ponto esquecido é o IPASG (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Município de São Gonçalo). Se a reforma da previdência é um tema polêmico a nível federal e estadual, municipalmente não seria diferente. Seria justo São Gonçalo pagar sozinho as aposentadorias dos servidores que serviram a todos, inclusive aos cidadãos de “Alcântara”?
Os números são frios e não sonham por nós. Então, façamos um outro exercício de imaginação. E se, por um acaso, chegássemos a um acordo onde ambos os municípios assumissem a dívida repartida? Qual dos municípios teria mais sucesso?
Separar Alcântara hoje seria condenar um município
Uma das outras lendas que ouvimos com frequência é a que “Alcântara sustenta São Gonçalo”. Pode até ser que o maior centro comercial da cidade tenha um alto nível de contribuição nos impostos. Mas é preciso entender que é a circulação de dinheiro dentro do município que faz a “mágica” acontecer.
Um dos pontos mais sensíveis dessa divisão seria a diferença socioeconômica entre as duas cidades. Em 1995, os políticos contra a emancipação já alertavam sobre isso. Edson Ezequiel, ex-prefeito (89-92 / 97-00), dizia que os distritos com menor arrecadação, mais pobres, eram (e ainda são) os que têm maiores problemas estruturais.
Enquanto isso, na parte com maior IDH na cidade, região central e 4º distrito, a infraestrutura é mais antiga e sedimentada. O calçamento do Paraíso, por exemplo, data dos anos 60.
Essa divisão entre regiões também pode ser vista no valor dos imóveis, cujo preço de venda/aluguel de uma residência varia bastante. Naturalmente, quem mora nas regiões mais caras tem maior poder de compra, elevando a arrecadação da Prefeitura. Em consequência, as regiões ficam mais atrativas aos novos investimentos comerciais e imobiliários. Não por acaso, os Shoppings de São Gonçalo são localizados no 1º distrito, com fácil acesso ao público dos 1º e 4º distritos.
O resultado é que, uma vez separados e com as dívidas devidamente repartidas, o município de “São Gonçalo” seria mais atrativo que o de “Alcântara” para os novos negócios na região. E assim, perderíamos a possível solidariedade dos impostos para aplicar em todo município.
Se o COMPERJ foi uma esperança para Itaboraí e Alcântara, hoje não passa de um investimento mal sucedido, longe do que foi prometido. Por outro lado, “São Gonçalo” é mais próximo das duas cidades mais bem sucedidas do Estado do Rio de Janeiro e, porque não, do país: Niterói e Rio de Janeiro.
Dois prefeitos, duas câmaras e outros problemas
Mesmo concordando que administrar duas cidades menores seria muito mais fácil, sabemos que o interesse político é outro. Até porque, 2 cidades teriam 2 câmaras legislativas, 2 prefeitos e mais espaços, vulgarmente chamados de “currais eleitorais”, estabelecidos.
A nova cidade de Alcântara também precisaria de um novo corpo de funcionários públicos, assessores, prédios administrativos… enfim, dinheiro.
Em 2018, 1/3 dos municípios brasileiros fecharam no vermelho. Alguns estavam há meses sem pagar funcionários. E essa realidade só tende a se complicar, visto que, em tempos de crise econômica, se o próprio governo federal está sem verbas para pagar suas contas, quem dirá irá socorrer municípios em apuros financeiros.
Soluções melhores que a emancipação de Alcântara
Mesmo que o sonho mágico da emancipação sem dívidas fosse concluído, ainda haveria outro problema: deputados federais. Sim, é preciso tê-los para facilitar a negociação de dinheiro federal para um município.
Como sabemos, há tempos que São Gonçalo não tem representantes identificados com a cidade. Talvez, o último tenha sido o próprio ex-prefeito Edson Ezequiel Matos que, em 2014, largou a vida pública. Após isso, outros deputados até tentaram dar um abraço na cidade, mas nada genuíno.
A solução, não só para nossa cidade, mas para todas as outras localidades brasileiras, seria a implementação do voto distrital, cujo formato distrital misto é o que mais me agrada. Dessa forma teríamos, obrigatoriamente, um deputado para nos representar municipalmente.
Como essa proposta é quase impossível de ser adotada no Brasil, cabe a nós, gonçalenses, fazermos um esforço nas próximas eleições para eleger representantes para essa parte do Leste Fluminense.
Fontes
Uma fonte importantíssima foi o documento escrito por Hebert Guilherme de Azevedo, Mestre em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicado em 2015. A partir do trabalho dele foi possível obter uma série de dados analisados pelo mesmo em sua dissertação “Projeto de Emancipação do Alcântara e Política Integracionalista de São Gonçalo: Conflitos Discursivos“, onde ele revisita os argumentos dos principais envolvidos na época. Clique no link, leia a análise de Azevedo e forme suas conclusões.
Excelente texto (como sempre) e de fácil compreensão, Matheus.
Parabéns!
Obrigado, Alexandre!
Sempre que posso, tento produzir o máximo para dar um mínimo de referência à população. Espero que esteja funcionando. 🙂
Abraços.
Brilhante argumentação. Realmente Alcântara não poderia se sustentar sozinho porque é a circulação de bens e dinheiro que move Alcântara, conforme você disse. E essa circulação ocorre porque Alcântara está em São Gonçalo.
Oi, Maurício.
Sim, somos um sistema. E essa análise que fiz foi para, também, tentar dar uma outra perspectiva sobre a participação do nosso grande centro comercial na cidade. A conversa de que “Alcântara sustenta São Gonçalo” sempre volta à mesa, mas pouco se analisa os dados que temos à mão sobre “onde mora o dinheiro” por aqui.
Obrigado pelo comentário!
Abraços.
Prezado Matheus, gostaria de convida-lo a conhecer o projeto. Tenho certeza que alguns elementos importantes foram abordados de forma superficial.
Esse projeto sério está sendo discutidos por duas universidades importantes com apoio de uma fundação. Sem aventureiros e tem se mostrado totalmente viável.
O estudo estará pronto até o final do ano.
[…] que todas essas regiões, como já citei neste outro post, têm proximidade com Niterói e Rio de Janeiro. Duas das cidades com maior IDH (índice de […]
[…] últimas 2 eleições, houve um fenômeno chamado Alcântara vs São Gonçalo. Ou seja, quando se mapeia os votos por distrito, há uma clara divisão. Nessa […]
[…] os dias, vemos filas nos bancos, aglomeração em Alcântara e comércio a pleno vapor nos bairros menores. E a sensação que fica é que parecem ações para […]
Tem alguns problemas na linha de argumentação, que não levou em conta por exemplo o repasse da união que é proporcional a quantidade de habitantes, até o limite de 300 mil habitantes. Outra questão é que duas camaras e duas prefeituras também significaria novos empregos formais ligados a nova prefeitura , o que aumentaria a movimentação de dinheiro no recém criado município de Alcântara. Tendo mais consumo, é natural que tenham mais micro e pequenas empresas, gerando ainda mais emprego. Se alguns desses novos negócios forem serviços, aumenta a arrecadação em iss do município. Não to dizendo que em um pais de mais de 5000 municipios, 0,5% de toda a população fique reunida em uma cidade que não é capital do seu estado.
Obs : Dos aproximadamente 1,2 milhões de habitantes em nossa cidade. Apenas 128 mil tem empregos formais. Os outro 90% tem empregos informais, são aposentados, pensionistas, vivem de alugueis, desempregados ou estão no crime.
Oi, Alex.
Na verdade, o problema na linha de argumentação é não atender às expectativas de quem deseja ver dois municípios, rs. Fora isso, tudo faz sentido.
Imagina se a cidade do Rio, com seus quase 7 milhões de habitantes, tivesse a “genial” ideia de se separar, criando 14 municípios com até 500.000/habitantes para receber mais verbas do governo federal. Será que aumentariam a receita? Sabidamente, não.
Justificar a criação de empregos formais com a criação de mais um município é, apenas, alimentar a mamata estatal que corrói vários municípios, atestando a incapacidade de atrair empresas e gerar novos negócios.
Afinal, quando a maior empregadora de uma cidade com mais de 1 milhão de pessoas é a prefeitura, é sinal de que algo deu muito errado.
Sugiro também que você busque os dados sobre a RECEITA ANUAL do município. Veja o quanto disso é composto por ISS+IPTU e o quanto que é constituído de repasses federais.
Sugiro fortemente, também, que busque as informações de repasses no PORTAL DA TRANSPARÊNCIA federal, no http://www.portaltransparencia.gov.br/localidades/3304904-sao-goncalo.
Um exercício interessante é ver o quanto dos valores repassados são feitos diretamente aos cidadãos. Ou seja: bolsa-família, BPC, auxílio emergencial e seguro defeso. Compare com os nossos municípios vizinhos. É um choque de realidade.
Entendo que o estado também tenha sua parcela de contribuição na retomada dos investimentos no Brasil. Mas sem empresas, não há emprego, nem economia que rode, em nenhuma cidade brasileira.
Pessoalmente, se as duas cidades se dividissem, penso que “São Gonçalo” teria muito a ganhar, atualmente. A parte que já tem uma infraestrutura tende a prosperar e reter a população com renda, que AINDA não migrou para Niterói, Maricá e Região Serrana.
Já para Alcântara, temo que seja uma tragédia.
Não faz sentido*